Por: | 30/12/2024
Letra Lúdica
Hildeberto Barbosa Filho
Zé Américo e Alceu
Não foi pequena a gratidão de José Américo de Almeida para com Alceu Amoroso Lima. Foi o grande crítico do modernismo quem revelou A bagaceira ao Brasil literário. Não só revelou, em artigo emblemático, publicado em O Jornal, como chancelou, com seu prestígio de leitor reconhecido e consagrado, o valor do primeiro romance do autor paraibano, como o tornou conhecido em todas as regiões do país, através de ampla
divulgação editorial.
José Américo havia publicado, em 1922, uma noveleta sem maiores implicações estéticas, segundo ele mesmo, uma tosca caricatura que, a seu modo, irônico e sarcástico,respondia ao marasmo e ao vazio literário da época. Livrinho menor de autor provinciano afeito aos sortilégios da cultura livresca, bebida no ócio e no silêncio da temporada no seminário.
Ele próprio assim o reconhece, quando afirma em carta ao crítico, datada de 10 de junho de 1928, que, naquele período, “andava descontente com o ficcionismo nacional”. Diz ele que fez “uma brincadeira: dei Reflexões de uma cabra. Uma caricatura perpetrada em menos de 8 dias. É localissima e de mau gosto. Não presta para nada: representa, apenas, um documento de reação contra os modelos consagrados”.
Alceu, também enfastiado do meio literário e da “literatura sorriso da sociedade”, típica da belle époque, apostou alto na escrita romanesca do paraibano. A despeito de lhe ver defeitos (o instintivismo dos personagens e a carência da noção de tempo), exalta o romance de maneira entusiasmada. Superestima suas virtualidades estéticas e estabelece a rubrica de marco do romance de 30, consagrando, em definitivo, sua qualidade de pioneiro.
Isto não era pouco. Também pudera! Os jovens modernistas, de 22 a 30, com seu ímpeto iconoclasta e seu furor destrutivo, não lograram nenhuma obra literária de intrínseco valor artístico. Fizeram manifestos, plataformas, programas, teorias.
Nada de magnitude na área de ficção. Na poesia, muito menos. Macunaíma é obra experimental, programática, espécie de manual etnográfico e folclórico. Paulicéia Desvairada é mero exercício de poética vanguardista, embebida das matrizes expressivas que chegavam da Europa.
Era a hora, sim, de um romance como A bagaceira. Se falho e frouxo na sua estrutura interna, e apesar de seu tom retórico e tribunício, eivado de teses deterministas, biológicas e racistas, conseguiu ocupar um espaço vazio e chamar a atenção do Brasil para o subdesenvolvimento econômico e social do Nordeste.
Até então a seca, por exemplo, funcionava como elemento decorativo de uma paisagem, e as teorias naturalistas se constituíam como fontes irrefutáveis de explicação, a partir dos critérios do meio, da raça e do momento, de acordo com o crítico francês, Hippolyte de Taine.
Mesmo trazendo o crivo crítico, ideológico, e já incorporando certo sentido de construção, sobretudo na técnica narrativa e em certos torneios estilísticos, A bagaceira não consegue fugir ao peso do passado, pagando excessivo tributo a uma poética de teor naturalista.
Nesta mesma carta, o autor revela que concebeu o plano da obra em 1924. Assinala: “Primeiro, as teses. E meu maior esforço foi procurar dilui-las na ação para que o romance não tivesse o caráter de um ensaio”. Tal objetivo, infelizmente, não foi alcançado. Na mais das vezes, em meio ao ritmo novelesco e às situações melodramáticas do enredo, é o viés doutrinário e ensaístico que domina a condução do romance e a retórica rebarbativa da frase.
(Texto publicado ontem, 29/12/24, em A União).