Hildeberto Barbosa
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Hildeberto Barbosa

Ainda Zé Américo e Alceu

Por: | 06/01/2025

Letra Lúdica
Hildeberto Barbosa Filho
Ainda Zé Américo e Alceu

Num dos capítulos do livro, Cartas que falam: ensaios sobre epistolografia (Belo Horizonte: Relicário, 2023), Leandro Garcia Rodrigues trata da relação epistolar entre Zé Américo e Alceu Amoroso Lima. Estampa, na íntegra, carta inédita do autor paraibano, de 10 de junho de 1928, destinada ao crítico, abordando dois tópicos essenciais, a saber: comentários acerca do processo de criação de A bagaceira e seus agradecimentos pelo artigo “Uma revelação”, no qual Alceu Amoroso Lima se debruçara, entusiasmado, sobre seu romance.

No que concerne ao primeiro tópico, o romancista chama a atenção para as dificuldades atinentes à elaboração do texto ficcional em função das múltiplas tarefas forenses em que se encontrava mergulhado. Diante do material acumulado, diz o autor que começou a “condensá-lo”, e aludindo às referências críticas feitas por Agripino Grieco, afirma que tem “horror à continuidade narrativa”, detestando, por outro lado, a “minúcia”. Daí, ressalta Zé Américo, “o processo de eliminação”. Acrescenta que procurou “reduzir tudo a flagrantes, manchas e sugestões”. “O que parece ‘detalhe’ ao Agripino”, afirma, “ é uma intervenção das coisas que compõem a tragédia”.

Noutra passagem, revela que procurou “suprimir a ênfase e a sensibilidade própria”, embora não fugisse ao viés realista da narrativa. Segundo ele, “os nomes dos personagens e dos lugares são todos de minha Areia”. Uns tipos funcionam como símbolos; outros, assegura o escritor, “são de carne e osso”.

O dito, portanto, vale para que o leitor possa conferir o equilíbrio entre intenção e gesto. Verificar, por exemplo, se o plano da fábula romanesca alcança o resultado estabelecido.

No meu modo de entender, acredito que não. A descontinuidade narrativa não me parece defeito. Vejo mais como um traço de modernidade que já se desenhava, com perfeição, na pena de um Machado de Assis, ou mesmo nos transes experimentais de um Oswald de Andrade. Manchas, há muitas, às vezes até de teor expressionista, como bem observou Nelly Novaes Coelho. Sugestões não lhe falta, sobretudo nas páginas descritivas da natureza em que Zé Américo é mestre incontestável.

Tudo isto, no entanto, constitui momentos pontuais, passagens soltas e encravadas dentro de uma estrutura ficcional que submerge ao peso da frase tribunicia e à percepção de mundo decalcada nas doutrinas deterministas de um autor formado no positivismo erudito da Escola de Recife. Aqui, “os demônios culturais, subjetivos e históricos”, de José Américo de Almeida, não passaram pelo necessário e efetivo processo de transfiguração estética, que faz dos dados referenciais, concretos e imaginários, o raro artefato verbal de um romance como autêntica obra de arte.

O segundo aspecto da carta é todo de gratidão e louvor. O romancista exalta as virtualidades do crítico, tocando pertinentemente em características que bem distinguem o apostolado exegético de Alceu Amoroso Lima. Aqui, o autor de A bagaceira, momentaneamente, assume a palavra de leitor culto, sensível e sagaz, contribuindo, assim, para a elucidação metacrítica enquanto investigação essencial no âmbito dos estudos literários.

Unidade, construtividade, sugestividade, cultura, sentimento de brasilidade, eis alguns dos ingredientes que o romancista seleciona para definir o perfil do grande crítico do modernismo brasileiro.

Creio que cartas como esta, pela magnitude dos missivistas e, principalmente, pela qualidade da matéria discutida, configura fonte primária das mais ricas na tradição da crítica e da história literárias.

(Texto publicado ontem, 05/01/25) em A União)


FONTE: A União - via Facebook - Acesse

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