Amante do Sagrado e de toda Literatura que, explícita ou implicitamente, sempre o referenda.
Assim definiria o falecido crítico literário paraibano Gilberto Lucena.
Em conversas com amigos sobre as intrigas entre o céu e a Terra, Gilberto parecia saber tudo.
“Ninguém lê nada, não sabe de nada, não quer saber nada...”, dizia ele, momentaneamente irritado com a falta de interesse da maioria por adquirir conhecimentos sobre a filosofia cristã, por exemplo, ou acerca da obra do poeta paraibano Sérgio de Castro Pinto; ou os poemas escatológicos de Augusto dos Anjos e seu atormentado “Eu”, entre outros – logo soltando sua sonora gargalhada e, depois, de olhos fechados, cantando, com sua expressiva voz, com a alma estimulada pela vontade de Baco, canções compostas talvez por seus ídolos maiores: Elton John, Elvis Presley, Nat king Cole, Frank Sinatra, entre outros do mesmo naipe os quais Gilberto, em nossas conversas, não parava de referendar no meio de outros grandes artistas; da Literatura, do Cinema, do Teatro, da Ópera, da música “popular” brasileira e da Filosofia; e sempre emocionado, frequentemente a nos dar as bênçãos de João XXIII numa compenetrada imitação do sagrado gesto do tal papa – para Gilberto, amante dos fundamentos ideológicos e das artes que desenvolveram os grandes ícones do catolicismo, um verdadeiro “santo padre” entre grandes santos seguidores de Jesus Cristo.
Crítico feroz das ladroagens políticas-governamentais que sempre assolaram o mundo em todos os seus tempos e lugares – e que lhe renderam o definitivo ceticismo quanto a mudanças possíveis, aqui e ali, em direção à fundação daquele eternamente esperado “paraíso terrestre” – quando em fim de grandes rodadas de cerveja, Gilberto preferia cochilar (fingia que dormia?) a continuar a participar das imoderadas e cacarejantes tagarelices de certas conversas fiadas.
Malgrado que não sejam completamente inúteis, já que têm a função de nos distraírem de inúteis preocupações, e mesmo contando com o bom humor de Gilberto, sua disposição de contar piadas entre escarnecedores zombeteiros e de gargalhar com eles não o afastavam de sua atenção cotidiana as desumanas corriqueiras perversidades remanescentes, que o angustiavam por condená-lo, já que sempre em vigília, a nunca conseguir se livrar completamente da consciência do lado trágico da existência e gozar do direito a alegria – ainda que, nele, a alegria fosse talvez apenas expressão de sua angústia anestesiada pelo “vinho”, cujos poderes de “alegrar” o coração humano foram referendados até mesmo pelo abstêmio Jesus Cristo.
“Amigo Archidy”, sempre alertava Gilberto trincando os dentes, franzindo as sobrancelhas, apertando os olhos e esticando os cantos da boca com expressão de quem comeu e não gostou: “a coisa é muito séria!” – sendo sua referência “a coisa” séria fundamentada em sua percepção sobre os valores que andam a motivar o status quo atual do mundo, embora também referente a todo complexo estelar milagrosamente existente no vazio universal, cujo mistério de sua presença anda sendo querido ser resolvido milenarmente a partir da assustadora pergunta fundamental “por que há algo (no vazio, e tanto, e ainda tão más coisas e pessoas) ao invés de nada?!”.
Pus a imagem alternada de seu repetido sorriso com a de um mendigo num vídeo clipe experimental, que produzi a ilustrar uma cena de minha música instrumental “Ode a diversidade”, postada no Youtube, sem que, além do desejo de homenagear o amigo Gilberto Lucena “imortalizando” sua imagem em meu vídeo, eu tenha pretendido jamais sugerir que ele risse da desgraça alheia (embora, talvez como eu, ele pudesse zombar da desgraça de que comungamos todos).
Porque seu sorriso está lá depois da imagem do mendigo para ilustrar dois momentos distintos, duas condições de vidas diversas entre dois sobreviventes de um mesmo mundo confuso.
Como apreciador da poética cultura espiritualista – sendo para o poeta Argentino Jorge Luis Borges qualquer “livro sagrado” pertencente ao ramo da literatura fantástica – ao contrário do império de muitas oscilações entre crença e dúvida a motivar as ações da maioria sob a mira do Céu sobre a Terra, sei exatamente onde está agora a “alma” de Gilberto Lucena.
Porque a lembrança de sua robusta presença sobre este mundo ficará ainda animada em minha memória por algum tempo, assim como na memória de outros como nós, apesar de já “maduros”, um tanto ainda ingênuos devotos das artificiais alegrias de Baco.
Assim, seguirei a lembrar-me de Gilberto Lucena.
Pelo menos até que, como ele, eu também seja forçado a esquecer-me de tudo o que apreendi a construções de mim mesmo e daqueles outros mundos paralelos, cheios de coisas, personas e outros deuses que, como também reconheceu Gilberto, a imaginação, a inteligência associada ao mal (que começa considerando possível a ilusória ambição de tudo poder possuir), também com ajuda das artes, nos ajudaram a formar e multiplicar sobre a Terra.
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