Por: | 21/01/2025
Letra Lúdica
Hildeberto Barbosa Filho
Inspiração e labor
“Com exceção dos poetas românticos e dos autores ingênuos, nenhum escritor costuma falar de seu trabalho a partir de palavras como ‘inspiração’ ou outras semelhantes, que possam sugerir algum tipo de procedimento mediúnico na hora da criação. Pelo contrário: a maioria prefere mencionar as dificuldades e o esforço, conscientes de que a boa escrita não cai do céu”.
Leio
este parágrafo no curioso e sugestivo livro de Antônio Fernando Borges, não perca a prosa: o pequeno guia da grande arte da escrita (Rio de Janeiro: Versal, 2003).
Não tiro suas razões, mas sinto, nas suas palavras, certo tom pejorativo, quando se refere à categoria da “inspiração”, ao mesmo tempo em que tende a exaltar a ideia de que o ato de escrever, e escrever, bem “não cai do céu”, é esforço, é trabalho, é labor etc..
Talvez eu seja um desses autores ingênuos ou um romântico tardio, pois, ao falar do meu processo criativo com a palavra, principalmente a palavra que se pretende literária, não tenho o menor pudor em falar de inspiração. Não diria meio mediúnico, sopro divino, possessão ou expressões equivalentes a que tantos aludem na circunstância desse debate.
Admitindo o papel relevante da inspiração, pelo menos nos limites do meu método de criação, não desprezo, no entanto, a função essencial do lavor com as palavras, o vigor de certos procedimentos técnicos, a apuração do estilo, o esforço, enfim, para equilibrar aquilo que ele mesmo, Antônio Fernando Borges, chama de “exatidão, verdade e harmonia”, isto é, a convergência de sintaxe, semântica e beleza.
Não sei como ocorre com os outros. Manuel Bandeira, por exemplo, nunca descartou a presença da inspiração na fatura de seus poemas. No delicioso Itinerário de Pasárgada, há páginas primorosas sobre a questão, e não me consta que o autor de Ritmo dissoluto possa ser chamado de romântico, pelo menos de romântico em sentido restrito, ou muito menos de ingênuo. Ao contrário, Bandeira foi um grande estudioso e um profundo conhecedor das técnicas do verso, sem negar, porém, a força da inspiração como elemento deflagrador do processo de criação poética.
Mário de Andrade também nunca negou que a inspiração fosse uma componente essencial ao ato criador. Chegou mesmo a elaborar, de maneira lúdica e idiossincrática, uma fórmula teórica, assim definida: lirismo + crítica = a poesia. Entendendo-se, aqui, lirismo como inspiração, e crítica, como o trabalho racional que deve se seguir ao relâmpago emocional do primeiro momento.
João Cabral de Melo Neto, por outro lado, e num extremo das ideias, sempre enfatizou a disciplina, a racionalidade diante dos vocábulos, o trabalho, a transpiração, a construção do poema como uma espécie de engenharia da linguagem. Era o seu percurso, a sua estratégia, enfim, a sua metodologia perante os vocativos da realização estética.
Quero crer que os três têm razão. Cada um, a seu modo, aceitando ou não o impulso da inspiração, conseguiram consolidar uma obra lírica das mais representativas da literatura brasileira. Bandeira e Cabral, mais do que Mário, em que o estudioso me parece maior que o poeta, podem ser vistos como dois paradigmas emblemáticos da poesia moderna no Brasil, naquilo que ela pode conter de intuição e razão enquanto pólos que se harmonizam na arquitetura do verso.
Enfim, prefiro pensar que ambas as categorias me parecem indispensáveis. E, em sendo assim, devem existir ou coexistir como fundamentos intrínsecos à frutificação do poema como um corpo inteiriço dotado de exatidão, verdade e beleza.
(Texto publicado ontem em A União)