Por: | 17/02/2025
Letra Lúdica
Hildeberto Barbosa Filho
Sentir dor faz Bem!
Na sala de espera da ortopedista, leio esta frase inscrita na porta do consultório: “Sentir dor não é normal”. Deixo-me meditar sobre o seu teor. E me indago acerca de sua validade.
Se
sentir dor não é normal, também não sou normal. Mas que diabos é se sentir normal?
Estava ali, sob a serenidade do ambiente climatizado, lendo o último romance de Joseph Conrad, à procura de curar a minha dor. Dor do corpo, fruto de três patologias acusadas na ultrassonografia que fiz, por solicitação da jovem e simpática médica. Um derrame bicipital, uma bursite e uma tendinopatia do supraespinhal e infraespinhal.
Como disse: dor do corpo. E como dor do corpo poderia citar tantas que têm me afligido desde que nasci até os dias de hoje. Lá se vão mais de setenta anos!
Dor de dente, dor de cabeça, dor de estômago, dor de barriga, dor dos rins, dor do fígado, dor dos olhos, dor do tornozelo, dor do ombro, dor do joelho, dor da virilha, dor de cotovelo, esta nos dois sentidos: o denotativo e o conotativo. Decerto mais neste que naquele.
Sentir dor, portanto, é normal, sim. Desculpe- me a ciência médica. Anormal seria não sentir dor. Imaginemos uma civilização sem dor. Um estado de absoluta analgesia. Seria certamente um modelo de distopia singular.
A dor é uma experiência ontológica e, por isto mesmo, faz parte da existência humana em todos os tempos, em todos os lugares, em todas circunstâncias. Ela traduz nosso lado sombrio e frágil, nossa precária arquitetura física e psicológica. A nossa delicada e vezes cruel condição moral, a nossa malha rasurada de emoções contraditórias.
Veja, leitor, que já estou falando de uma dor que não pertence apenas ao corpo. Falo da dor da alma, que pode acompanhar a dor do corpo (afinal somos um soma), mas que a antecede e a ultrapassa na misteriosa linguagem dos que a sofrem. E todos a sofremos.
Eu, por exemplo, sinto, como o poeta, a dor das coisas que passaram. Das que não passaram, das que nunca irão acontecer. A dor dos fenômenos imaginários, a dor das imagens perdidas, das palavras parcas e poucas.
Sinto a dor do menino antigo, varado pela solidão do meio dia, dentro dos pastos e dos cercados. A dor de ter sido jovem em meio ao furor ditatorial do tempo e das ideologias. A dor de ter perdido o latifúndio dos sonhos e a fazenda das utopias e das ilusões.
Viver foi sentir dor. Como não é normal sentir dor? Sem a dor não se vai a lugar nenhum. Quem quiser passar além do Bojador, diz Fernando Pessoa, tem que passar além da dor. A dor dói, dura, destrói, dilapida, desgasta, porém, tende a ensinar outros caminhos, a abrir novas veredas.
Sem a dor não teríamos cultura, arte, poesia.
E por falar em poesia, gosto tanto daqueles versos de Paulo Leminski, que o poeta Lúcio Lins vivia a repetir: “O homem com uma dor / se veste mais elegante”. Ou, então, daqueles outros da canção popular: “Tire seu sorriso do caminho / que eu quero passar com a minha dor”.
Sentir dor é normal. Sentir dor faz bem!
(Texto publicado ontem, 16/02/25, em A União)