Hildeberto Barbosa
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Hildeberto Barbosa

Poesia que pensa

Por: | 21/02/2025

DE OLHO NA ESTANTE
Hildeberto Barbosa Filho
Poesia que pensa

Gosto do título, Cartografia do abismo (São Paulo: Laranja Original, 2020), com que Ronaldo Cagiano nomeia um de seus livros de poemas.

Título eloquente que, associado às epígrafes escolhidas, tanto para o livro quanto para os textos, sinaliza, desde já, e como é peculiar aos bons títulos, para o leque de motivos que mobiliza o olhar do poeta na voz enunciada no corpo dos poemas.

Esta cartografia contempla muitas situações existenciais e não esconde as zonas de atrito nem as esferas melancólicas que invadem a percepção poética, no tom e na perspectiva. Ao tom, às vezes testemunhal, às vezes reflexivo, às vezes participante, associa-se uma perspectiva crítica e, não raro, indignada, perante a realidade que nos cerca.

Ronaldo Cagiano me parece um poeta do combate e procura uma poesia que pensa, realizando uma espécie de escuta dos conflitos humanos, quer na sua dimensão individual e subjetiva, quer nos apelos da dinâmica social e política.

Ao desconforto íntimo de certas circunstâncias, sobretudo, aquelas demarcadas pelo pesadelo do tempo, tópica central de sua expressão lírica, soma-se o poder de observação sobre as fraturas e as contradições dessa época liquida, como diria Zigmunt Bauman, submetida à lógica do mercado e ao nefasto modelo neoliberal.

Entre tantos outros, um poema, como “Utensílio”, por exemplo, à página 103, prefigurado como uma possível poética, pode ilustrar muito bem esta vertente, no jogo explícito da enumeração caótica de que falava Leo Spitzer:

Num poema cabe tudo:

a escrita torta da solidão
os gatos de hemingway
os anjos de rilke
a tristeza do poeta Juan gelman
………………
a humilhação dos excluídos
a antipoesia de Auschwitz
o tiro que matou lorca
……………….
a coreografia dos danados
a arqueologia do caos
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a lucidez lúdica do verbo

Há, portanto, um acento meditativo em grande parte dos textos, a convidar o leitor mais para a experiência da crítica social ou da ponderação filosófica, do que mesmo para a fluidez do movimento estético que deve reger o comportamento das palavras no poema, considerada a sua lógica interna e formal.

Talvez o fato se dê, não exatamente porque o poeta não tenha consciência de certas normas artísticas ou de certo sentido da forma, mas devido às situações prementes que o impulsionam para uma lírica de denúncia e de protesto.

Existe como que o primado da urgência acusatória em meio ao seu projeto poético, fazendo de Ronaldo Cagiano uma espécie de figura prometeica a vergastar, com seu poderoso idioma, os males, os erros, as injustiças próprias de um modelo social apocalíptico.

Ronaldo Cagiano não é somente um poeta que investiga os desacertos da condição humana, em sua temática de amplo espectro, mas também um poeta ciente dos cuidados técnicos com a linguagem e muito atento aos itinerários seletivos da tradição lírica.

Percebo, na fatura de muitos poemas, a presença ativa do leitor culto e, ao mesmo tempo, o viés dialógico de sua poesia, sutilmente explorado nas veredas intertextuais e metalinguísticas que rastreia na composição do verso.

Escrever, portanto, para Ronaldo Cagiano, não se confunde com o mero exercício lúdico em que tantos se comprazem. Muito menos significa adesão deslumbrada a modismos literários que a nada levam.

Sem temer o uso da palavra, valorando o instrumento do verso, lançando mão dos investimentos metafóricos, aposta numa poesia que fala e reflete acerca de temas essenciais e permanentes.

Mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e em São Paulo. Atualmente reside em Portugal. É Contista, ensaísta, autor de inúmeras obras, das quais podem ser destacadas O sol nas feridas (poesia), de 2012, e Eles não moram mais aqui (contos), de 2016.


FONTE: Facebook - Acesse

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