Por: | 11/03/2025
Letra Lúdica
Hildeberto Barbosa Filho
Acontecimentos
Alguns acontecimentos dizem muito de mim. Sou quem sou, decerto, pela ressonância magnética desses acontecimentos. Os acontecimentos forjam uma personalidade e estabelecem um destino.
Divido os acontecimentos de minha vida, aqueles que me marcaram definitivamente e com os quais convivo na memória, no pensamento, na imaginação, em três categorias básicas: os pessoais, os culturais e os históricos.
Menino de origem rural, morando em casa com curral de lado, logo cedo me habituei a conviver com os bichos. Cavalos, jumentos, éguas, bois, novilhas, vacas de leite. Tirar leite de Manga Rosa, dia amanhecendo nos descampados do Cariri, foi um desses acontecimentos pessoais que nunca esqueço.
Tirar o leite, beber o leite, comer a coalhada, a manteiga e o queijo me deu alguma solidez de corpo, alguma bravura nos nervos, alguma verdade no sangue. Sinto isto como uma componente principal na minha história espiritual e fisiológica.
Creio também no poder sagrado ou lendário de algumas criaturas com quem convivi. Certos espaços, sobremaneira aqueles por onde andei, pastoreando o gado, as nuvens, o sol, o silêncio, forjaram a marca indissociável de algum gesto, de muitas atitudes, dum certo jeito de ser.
Era estudante secundarista, no Colégio Estadual da Prata, em Campina Grande, e era também o dia 13 de dezembro de 1968. Fiquei estarrecido e indignado com a publicação do AI 5, dispositivo do terror e da ditadura militar que viria iniciar a era nublada, sombria daqueles ásperos tempos.
Vivi, portanto, a fatalidade de um acontecimento histórico que deixou muitas cicatrizes em mim e em toda uma geração. Ninguém escapa aos tacapes de um regime autoritário. A perseguição, a violência, a tortura, o assassinato, como modus operandi do governo militar, constituíram um acontecimento ao mesmo tempo doloroso e memorável.
O pessoal e o histórico se misturam na minha odisseia particular. As experiências se entrelaçam na manufatura de um temperamento e de um caráter. De certa maneira sou o que sou porque sou o que vivi.
A descoberta de poetas, como Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima, para me ater à esfera mais íntima da vida cultural e estética, isto é, a poesia, foi, sem dúvida, um dos mais decisivos acontecimentos de minha existência.
Talvez mais que um acontecimento ou, em certa medida, um acontecimento especial, uma espécie de “alumbramento”, para me valer de uma palavra tão do agrado do autor de A estrela da vida inteira.
Sem a poesia, já disse tantas vezes, nada teria tido sentido. Entranhada nas raízes das vivências pessoais, estrumada nos ecos históricos e respondendo aos apelos culturais, ela se fez por inteiro, como o acontecimento dos acontecimentos.
(Publicado ontem, 9 de março, em A União)