Por: | 14/03/2025
DE OLHO NA ESTANTE
Hildeberto Barbosa Filho
O destino das biografias
Sou leitor de biografias, embora simpatize muito com as ideias de Pierre Bourdieu, em seu ensaio breve e seminal, “A ilusão biográfica”. Também vejo, com agrado, a tese do jornalista e professor Phelipe Penna, de que as biografias não têm fim. São ilusórias, são precárias.
Nas
biografias não temos acesso direto à vida do biografado, mas apenas a uma representação, a uma imagem. E como ocorre com toda imagem ou representação, há verdades e invenções, acréscimos e lacunas, vazios, ambivalências, indeterminações.
Isto, não obstante, não as invalidam. Creio que podem fornecer material relevante para nos aproximar da vida e da obra dos autores que amamos. Não importa o tom nem a perspectiva que conduzem o biógrafo na sua apaixonada investigação.
Penso nisto, ao acabar de ler, da psicóloga e escritora argentina, Solange Fernández Ordonez, O olhar de Borges: uma biografia sentimental (Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009).
Partindo de alguns cadernos e de alguns textos manuscritos legados ao seu pai, advogado do grande escritor, como também do convívio com ele e sua mãe, Leonor Acevedo, a autora elabora, não tanto uma biografia no sentido clássico, mas um engenhoso ensaio tocado pelo sentimento de reverência e admiração.
Seu ponto de vista é interno e brota da amizade de que teve o privilégio de desfrutar nas conversas e passeios com o autor de O aleph. O elemento afetivo, no entanto, parece não comprometer a substância cultural e humana da pesquisa, na medida em que se tem uma iluminada fotografia de certos aspectos essenciais da vida íntima de Borges e, sobretudo, de certos flancos indispensáveis para a compreensão de sua obra.
Seu olhar, ao mesmo tempo objetivo, pois fundado em elementos concretos, e subjetivos, já que pautado pela afeição e pelo entusiasmo, recupera assuntos e motivos decisivos da trajetória literária do genial argentino.
Muito de Borges reaparece sob nova luz. Seus gostos, suas idiossincrasias, suas obsessões, assim como certos símbolos nucleares de sua escrita, a exemplo dos espelhos, dos tigres, das moedas, dos punhais, da cidade são decodificados dentro do contexto literário e filosófico dos gêneros que cultiva e mescla. Isto é, a poesia, o ensaio e a ficção.
O tempo, o duplo, a literatura, os livros, a divindade, o absoluto e outros temas abordados em sua obra são discutidos, com sensibilidade e inteligência, sobretudo, porque conectados, sempre, com os processos de criação intrínsecos à sua metodologia e com os passos que seguiu na complexidade de sua formação intelectual.
A infância, a família, a juventude, as viagens, as influências, as leituras, as amizades, a cegueira, a velhice, tudo é reposto através de uma narrativa de fino e cativante poder de reflexão. Uma narrativa de vigor meditativo, plasmada numa linguagem em que os acontecimentos descritos e analisados não elidem o brilho estético da palavra. Afinal, Solange Fernández Ordóñez é também uma escritora.
Talvez por isto, O olhar de Borges: uma biografia sentimental se prenda mais ao escritor e ao poeta, nos seus impasses e jogos com a construção literária, do que ao homem em si mesmo. Daí, a sensação de que um certo Borges aparece muito, o Borges da palavra, enquanto um outro ou uns outros são ocultados. Enfim, o destino das biografias, que também não deixam de ser literatura. E, em sendo literatura, diria o próprio Borges, não seriam outra coisa senão um sonho dirigido.