Hildeberto Barbosa
Hildeberto Barbosa
Hildeberto Barbosa

Que fiz da minha vida?

Por: | 17/03/2025

LETRA LÚDICA
Hildeberto Barbosa Filho
Que fiz da minha vida?

João Conde não me perguntou: Que fizeste da vida, Hbf?. No entanto, me dou, ao sabor desta letra lúdica, o direito de me perguntar e o de responder. Que fiz da minha vida?

Para me valer de um verso de T. S. Eliot, diria que a perdi, vivendo. Fui menino do campo. Me criei entre pai e mãe, dois irmãos e quatro irmãs, muitos primos, tios, avós e bisavós. Lidei, desde cedo, com o espanto dos bichos e dos elementos, com a dignidade dos animais, com a vastidão da terra agoniada, com a inclemência do sol, com a rara umidade dos invernos, com o aconchego noturno das histórias de assombração. Fiz a tabuada e a carta de abc. Provei da palmatória, nunca fui bom aluno, sempre detestei a disciplina, mas amava a caligrafia das léguas e os numerais do silêncio. Lembro-me, com ternura, de certos crepúsculos a tingir as tardes com o sangue cósmico e dos cálidos minuetos aos ventos do amanhecer. As pedras foram quase tudo. Deixei a roça pelo elevador. Fiz amizades, tive amores, descobri que o mundo, o vasto mundo, era muito mais vasto que o meu coração. Aprendi a ler Drummond, porém, não aprendi a decodificar o idioma da esfinge, o claro enigma, a máquina do mundo, a vida passada a limpo. Estudei ciências jurídicas e sociais, cursei letras clássicas e vernáculas, fiz política estudantil, amarguei o desgosto do terror, à sombra de uma ditadura militar. Fui aluno de Goffredo Telles Júnior no Largo do São Francisco. Durante alguns anos, São Paulo também me foi uma espécie de Londres das neblinas finas. Li mais Alceu Amoroso Lima do que Mário de Andrade. Augusto dos Anjos, José Lins do Rego e Ariano Suassuna constituem a minha santíssima trindade paraibana. Palestrei na ABL sobre o romance Fogo morto. Josué Montello veio me cumprimentar cordialmente, Thiago de Mello me deu um abraço com fervor, Ivan Junqueira me enalteceu a palavra e me levou ao Amarelinho. Tomei chope com Moacy Cirne no Lamas e me hospedei no Paissandu, onde o quarto, em que Alcides Ghiggia ficara, era a grande atração turística. Julguei no Prêmio Portugal Telecom. Votei em Paulo Henriques Britto, Sérgio Sant ‘ Anna e Luiz de Assis Brasil. Fui amigo de Lêdo Ivo, Nauro Machado e Alberto da Cunha Melo. Admirei, em especial, a poesia de José Antônio Assunção. Também escrevi muitos livros, colaborei com jornais e revistas, tive filhos, plantei árvores. Fiz poemas, fiz crítica literária, escrevi diários. Não fui um bom professor, mas amei a sala de aula. Fui um leitor disperso, circular, obsessivo. Viajei à Europa. Em Paris, bebi vinho à beira do Sena. Em Londres, apreciei as águas escuras do rio Tamisa. Em Amsterdam, fui ao Museu Van Gogh olhar de perto Os ciprestes e Trigal com corvos. Nos arredores de Berlim, visitei o campo de concentração de Sachsenhausen, entre comovido e perplexo. Errei mais do que deveria. Tive culpa, tive remorso, mas nunca deixei de cumprir a palavra dada. Não consigo conceber a verdade sem a beleza, a beleza, sem a graça, a graça, sem a naturalidade. Escrever, para mim, é uma abençoada maldição, um salvo conduto para o mistério, um árduo e delicioso exercício de descoberta e doação. Não me atraem esses tempos tardios, não me sinto confortável na assepsia da era digital, não creio na racionalidade humana, Deus me é uma incógnita permanente, mas não admito a metafísica do nada nem a fria e rigorosa perfeição da matéria. Meu passado nunca passou. Meu presente me inquieta e dói. O futuro virá, eu sei, desconhecido e implacável. Sinto-me incompleto e irrealizado, embora não tenha dívidas. Sou feito de dúvidas. Quando me for, irei isento. Daqui há alguns meses estarei com 71 anos de idade, e vou morrer escrevendo meus poemas.

(Texto publicado ontem, 16 de março no jornal A União)


FONTE: A União - via Facebook - Acesse

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