NOSSOS
AMIGOS SUICIDAS
Clemente Rosas
Dois textos
recentemente republicados NA REVISTA ELETRÔNICA "SERÁ?", de autoria de Aécio Matos e
Luciano Oliveira, me fizeram rememorar experiência igualmente dolorosa que vivi
também, há muitos anos. Eles falaram de
amigos fraternos que puseram fim às suas vidas prematuramente, deixando-os com
um vago sentimento de culpa, como se pudessem ter evitado tal desfecho. Sei bem
o que é isso.
Byron
Sarinho, que conheci apenas pelas notícias de suas conquistas amorosas,
políticas e intelectuais, e pelos textos consistentes, com os quais cheguei a
polemizar, era muito próximo de Aécio, com quem bebia e “filosofava”, em longas
noitadas. Costumava dizer que não queria viver além dos sessenta anos, para não
dar trabalho aos amigos e familiares, com suas mazelas. Teve filhos, mas nunca
constituiu família. E teorizava, em suas conversas, sobre a melhor forma de pôr
fim à vida. Era, de alguma forma, um solitário.
Fernando
Mota Lima eu conheci, ainda que um pouco tarde. Intelectual de peso, de muita
leitura e bom gosto artístico, era, ainda mais propriamente, também um
solitário: não tinha parentes próximos. Encontrei-o pela primeira vez num dos
nossos almoços na casa de Teresa Sales, dedilhando boa música em um violão.
Logo nos entendemos, falando de literatura e política, e tivemos outras breves
conversas, em visitas suas ao meu escritório de trabalho. Escrevia belos textos
para a “Será?”, mas parecia muito preocupado com a saúde, embora me parecesse bastante
rijo. Luciano era seu íntimo, e esteve perto dele em seus últimos dias. No seu
necrológio, feito na Revista, evoquei o conselho de um sábio oriental a uma
suicida iminente: “Não corra para a morte: ela a encontrará. Mas faça com que
esse momento seja como um fulfilment (ato de cumprir-se, completude)”. E
lhe fiz a pergunta: caro amigo, por que a pressa?
Armando de
Holanda, este meu amigo, talvez o mais próximo que já tive na vida, não se
enquadrava no padrão de solitário. Era casado (tinha duas filhas pequenas que
brincavam com os dois filhos do meu primeiro casamento) e arquiteto brilhante,
cujo belo opúsculo “Roteiro para Construir no Nordeste” tive a honra de
revisar. Fizemos juntos inúmeros programas: acampamentos nas praias do Litoral Sul
de Pernambuco, temporadas na fazenda do meu primeiro sogro em Campina Grande e na
casa do pai dele em Canhotinho (PE), fins de semana na casa de veraneio dos
meus pais em Praia Formosa, na Paraíba. Convivíamos intensamente, vendo bons
filmes, seguidos de sessões etílicas de avaliação ou curtição, quando fosse o
caso.
Não
configurava aparentemente – como, aliás, os outros dois amigos aqui comentados
– nenhum caso de depressão patológica. Só uma vez o ouvi falar, com algum temor,
da “solidão da morte”. Ao que repliquei, com minhas convicções racionalistas,
que os mortos simplesmente já não podem sofrer solidão, ou padecer por qualquer
outro sentimento. Viveu em paz com a
esposa, designer de joias, ambos profissionalmente bem sucedidos, apenas com
breve intervalo de separação, período em que estivemos um tanto afastados. Mas
logo os dois voltaram a se compor, sem traumas perceptíveis.
Nos
primeiros ventos da redemocratização do país, no Governo do nosso contemporâneo
de política estudantil Marco Maciel, ele foi convidado para coordenar um grupo
de estudos sobre possíveis impactos ambientais do Complexo Industrial-Portuário
de Suape. E logo também me convidou para integrar a equipe, na intenção de
contar com alguém de visão econômica e política mais objetiva, para se
contrapor a um certo visionarismo e alguma intransigência dos colegas, todos
arquitetos, pesquisadores sociais e quejandos. Mas houve uma “pausa de
arrumação” nas contratações de colaboradores do novo Governo, e acabei só nele entrando
um pouco depois, por outra porta.
Foi nesse
intervalo que surgiu o rumor de que o Programa Ecológico e Cultural de Suape seria
desativado, ou minimizado. E meu amigo, sem que eu estivesse por perto,
deixou-se levar pelo clima de tragédia criado pelos conservacionistas “à
outrance”, chegando a afirmar que, se o programa “caísse”, ele cairia também.
Ao final da última reunião do grupo, em clima de catástrofe, foi visto pelos
companheiros do CONDEPE muito pálido, e visivelmente transtornado. Chegando em
casa, beijou a esposa e as filhas, trancou-se no banheiro e enforcou-se.
Volto ao
tema inicial com a pergunta que não quer calar: poderíamos nós ter feito alguma
coisa para evitar tais desfechos? Aécio,
você tinha marcado uma cachaça com Byron para alguns dias depois do evento de
sua morte. Sabedor dos seus pendores autodestrutivos, poderia ter antecipado o
encontro e assim demovê-lo do ato final?
Luciano, você que atendeu, alta madrugada, uma ligação de Fernando com a
queixa de uma dor no pé (?), e conseguiu levá-lo ao hospital e liberá-lo depois,
poderia tê-lo acompanhado mais de perto, impedindo o desenlace? E eu, se estivesse ao lado de Armando na
fatídica reunião em que os arautos da tragédia o levaram ao desespero, teria
conseguido contê-los? Não temos resposta para isso. Mas a dor destas reflexões
estará sempre conosco.
Ocorreu-me
também, neste melindroso tema, deparar-me com outro texto no blog “Portal 100
Fronteiras”, assinado por W. J. Solha e igualmente republicado, sob o título “A
Versatilidade da Morte”. Nele, o autor
apresenta uma vastíssima relação de mortes reportadas na História e na Ficção,
todas dramáticas, penosas, chocantes. (Só mesmo a prodigiosa erudição deste meu
amigo poderia produzir tão exaustivo inventário de desgraças!). E finaliza com a indagação: “e como será meu
fim?”
A questão da
nossa humana finitude emerge, assim, a plena luz. E, por minha vez, pergunto: o
que nos prende à vida? Meu entendimento, que levo à consideração dos amigos, é
de que são os laços que estabelecemos, as responsabilidades que assumimos com
familiares, descendentes, pósteros. Num plano mais ambicioso, com nossos
compatriotas, com a nossa terra, com o país, com a humanidade. E também uma
certa curiosidade em relação ao futuro, por sombrio que se nos afigure. Os
suicidas são, quase sempre, solitários e descrentes.
No meu caso pessoal, já com filhos, netos, e até um bisneto, todos bem encaminhados, posso considerar que minha missão está praticamente cumprida. Mas ainda tenho uma netinha de dois anos, que quero ver crescer. Aos 84 de idade, não tenho a ilusão de vê-la adulta. Mas enquanto puder assistir ao espetáculo do seu desabrochar, e encarar, com ela e meus outros descendentes, sem temor, as ciladas da vida, as agruras, riscos e desafios deste mundo conturbado, estarei feliz. E sempre curioso em saber no que vai dar toda esta zorra.
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