Archidy Picado Filho
Archidy Picado Filho
Archidy Picado Filho

Adeus, amigos

Por: | 04/04/2025

 


Para o falecido amigo-poeta Lúcio Lins


Os médicos disseram que passei cinco dias em coma! Não vi nada, não senti nada, não me lembro de nada! Se a morte for isso, pra mim está bom.


Dito de meu pai em seus últimos momentos no Hospital Universitário



Entre as muitas impressões que muitos têm ao meu respeito consta a de que sou mórbido, com “predileção” à consideração da morte, a despeito da importância que todos devem dar a Vida.


Nas conversas entre amigos procuro justificar tal “predileção”, que me faz nutrir preocupação de levar sempre comigo um documento de identificação (para que saibam quem estava no corpo que usei, caso o encontrem caído em algum lugar), observando que, infelizmente, convivi muito cedo com as foiçadas da Morte para todos que, neste e em outros tempos, são presenteados com a oportunidade de vislumbrar, ainda que por breves momentos, toda a potência dessa Vida infinita que, desde sempre, tudo move e sustenta.


Infelizmente fazemos parte de um organismo cósmico que, como qualquer coisa no espaço-tempo, tem dimensões e durações limitadas. Durante o momento que se chama hoje, representante temporal da eternidade (a considerar a dimensão do agora eterno, para além da tirania dos calendários, do delírio dos dias e das noites), até mesmo o tempo de vida de uma estrela é curto. Entre os mistérios do mundo da Luz descobriu-se que muitas delas nem existem mais no céu. Certos físicos quânticos, como todos os cientistas, adeptos de São Tomé, finalmente viram e creram que, como intuíram antigos mestres do Oriente, a materialidade de tudo é fruto de um amálgama de forças a formarem desde a matéria-prima microcósmica, que tudo fundamenta, às estrelas, que explodem a luz da Vida no espaço-temporal. Assim, a Vida nada mais pretende além de forjar complexos orgânicos ao desenvolvimento e manutenção de mentes as quais lhe farão ciente de sua própria existência. (Se nos inclinamos impulsivamente para o autoconhecimento penso que é porque este é o impulso primeiro e último da Vida, que quer saber o máximo possível sobre seu próprio funcionamento).


Mesmo me sentindo inevitavelmente metido na Vida, ao contrário do que acontece com muitos, a consciência de minha morte me torna um tanto tranquilo em relação à participação na ânsia coletiva pela obtenção de tudo aquilo que, quer material ou imaterialmente valioso, constroem sentidos a justificar a sobrevivência de nossa identidade individual e de grupo sobre o planeta.


Quando olho para trás vejo que não conquistei a posse de muitas coisas consideradas importantes por causa de minha convivência com uma certeza básica: gerações e gerações passaram sobre a Terra e se transformaram em pó, algumas prematuramente, graças às forças brutais que regem os movimentos da natureza e da ignorância, da ambição e do desamor. Entre deuses, príncipes, reis, escravos e baratas estive com muitos que, hoje, sequer são sombras a vagar pela Terra: meus avós, meus pais, alguns amigos. Entre mortos e vivos, muitos nunca usufruíram sequer os pequenos prazeres da Vida. Milhões não usufruem. Mesmo os primeiros gigantes que, dizem, habitaram a Terra, com suas existências entre séculos, hoje fazem parte do passado remoto: imperatrizes e meretrizes, estrelas, dinossauros, impérios e vermes, tudo passa, tudo morre. Entretanto, tudo tem vivido; sempre; milagrosamente.


Não poderemos saber as razões ou os meios à expressão da primeira forma da Vida. Tenha ou não nunca havido um princípio, o fato é que, quer estrelas quer pessoas, estamos todos aqui. Mesmo que filósofos e poetas tenham desconfiado sermos não mais que personagens do sonho de um deus que é imagem no sonho de outro deus que sonha dentro do sonho de outros, de forma exuberante e maravilhosa a Vida existe e se espalhou como centelhas luminosas e mentes que brilham pelo gélido vazio e escuro espaço sideral, interior de seu coração infinito à formação de circulares mundos possíveis, onde pode experimentar-se em corpos e desenvolver-se em mentes ao conhecimento da criação de si e de seus sentidos.


Eis como sinto tudo. Eis como me sinto enquanto partícipe de tudo.


Como bem disse o Poeta, “quixotice dá força pra viver”.


É com minhas “fantasias” que fundamento o significado lógico-racional de minha permanência no mundo. Sei que, como a maioria, mesmo com nossas misérias, eu queira ficar para sempre; mas um dia não estarei mais aqui. E mais: no dia de minha partida, finalmente perceberei que hoje, somente hoje vivi, e que hoje e somente hoje morrerei.


Antes de ir, porém, direi a minha companheira que foram muitos prazeres conhecê-la. Aos meus filhos, que me desculpem as ausências e que, seja como for, procurem ser felizes e fazer outros felizes. A todos, enfim, deixarei escrito à gravura em minha lápide: “Que me desculpem aqueles a quem, involuntariamente, fiz sofrer. Que me desculpem aqueles aos quais, involuntariamente, ainda faria sofrer ”. E ainda: “Que me perdoem eventuais expressões apaixonadas daquilo que considerei partes da Verdade. Muito mais do que as histórias que revelarão minhas pequenas mentiras”.


Todos os campos são obrigatórios - O e-mail não será exibido em seu comentário