Por: | 05/05/2025
CONVIVÊNCIA CRÍTICA
Hildeberto Barbosa Filho
Quiosque e poesia
Da tradição oral e popular ao cancioneiro erudito, são muitas as esferas contempladas pela poesia.
Seus modos de proceder, no corpo da linguagem verbal, assume direções várias e matizes diferenciados.
Uns poetas se aconchegam ao conforto dos modelos consagrados, e outros, dando vazão a ousados experimentos técnicos e formais, procuram sulcar o árido chão dos discursos inventivos.
Diria que existe (e permanece!) uma poesia que brota da vivência afetiva e imaginária das comunidades, calcada nas formas fixas e na métrica rigorosa do verso, atenta, sobretudo, ao peso melódico da rima e à cadência de ritmos consoantes, harmoniosos, enquanto táticas retóricas exploradas e determinantes.
Em geral, essa poesia agrada ao ouvido e se revela, no poema, no soneto, na sextilha, na décima, no terceto, na quadra, no dístico, inteiramente entregue à funcionalidade das palavras no seu ajuste e encanto musicais.
Na sua particular manifestação, essa poesia parece colada mais aos imperativos de uma forma cristalizada, falando, em primeira mão, dos sentimentos e das emoções, do que enraizada no pensamento crítico ou na exegese irônica e distanciada que caracteriza a poesia moderna.
Ao áspero e agudo olhar de uma dicção lírica focada no elemento trágico da vida e num obsessivo compromisso com a linguagem, se contrapõe, ou corre, em paralelo, uma expressão poética mais amena, espontânea, simples e perfeitamente em sintonia com o horizonte de expectativa do leitor comum e das coletividades tradicionais.
Trago o assunto à tona, porque acabo de ler o livro, O quiosque em poesia, organizado por Melchior Sezefredo Machado (João Pessoa: Ideia, 2025), com prefácio de Demétrius Faustino e homenagens, in memóriam, aos poetas Marcello Piancó e Beto Caja.
A rigor, não se trata de uma antologia, uma vez que as antologias, pelo menos as que se prezam, procuram privilegiar o critério estético. Trata-se, portanto, de uma reunião de treze autores e seus respectivos textos, que pressupõe o senso de organização de um repertório de um grupo específico que, dentro de suas possibilidades criativas, se socorre da poesia como forma de elocução básica e de ativismo artístico e cultural.
São eles, pela ordem alfabética do sumário: Bebé de Natércio, Bira Delgado, Cabral Abrantes, Gilmar Leite Ferreira, Maria da Paz, Marconi Araújo, Melchior Sezefredo Machado, Merlânio Maia, Nelson Nunes Farias, Pedro Fernandes de Araújo, Poeta Nascimento, Raniery Abrantes e Wellington Vicente.
Confesso que não conheço todos, mas conheço alguns destes poetas e acompanho a trajetória de cada um deles na medida do possível. Além de bardos do verso, são declamadores, cantores, cantadores, intérpretes, compositores, trilhando, assim, faixas múltiplas no campo da criação.
Alguns, embora não se desvinculem das raízes orais mais atentas aos sabores da cantoria e do repente, incursionam, no entanto, pelas veredas da expressão erudita, a fundir, numa mesma composição, aspectos temáticos e estilísticos das vertentes clássicas e populares.
A propósito, tal fenômeno, de ordem artística, não tem sido incomum, pois vozes eruditas se valem das vozes populares, assim como vozes populares se abastecem das vozes eruditas no complexo modular da elaboração poética.
Ambas as vertentes culturais e estéticas se alimentam uma da outra na aventura dialógica dos processos literários, redimensionando o movimento da tradição que, se a rigor não se renova nem se reinventa, persiste e resiste, garantindo, assim, a continuidade do canto.
Vejo, por exemplo, esta curiosa fusão, de teor armorial, na dicção de um Merlânio Maia, quando, à página 72, funde Sartre e Jesus, nesta estrofe de onze versos:
Jean Paul Sartre diz que os outros
São o inferno mais cruel,
Mas Jesus prega que eles
São a passagem pro céu.
E eu fico com o mestre amado
Que constrói o seu reinado
Bem dentro do coração.
E o mandamento que traz
É o amai-vos muito mais,
Pois no amor reside a paz
Que nos dá libertação!
Mais apegado aos signos de uma erudição filosófica e literária, conquanto faça ecoar, ao som dos decassílabos, certo pendor de oralidade, comparece o menestrel do Pajeú, Gilmar Ferreira Leite, com este soneto, “A vida é movimento” (p. 37), de nítido viés anjosiano:
De Heráclito eu faço o movimento
E o “Élan Vital” de Bergson eu sigo,
Não tenho medo de algum perigo
E o que vale é viver cada momento.
Bebo o Lete para ter o esquecimento
Do que foi ontem, que não mais persigo,
E alcançar o amanhã, eu sei, consigo,
Pois o sol do querer me deixa atento.
Sigo em frente buscando um novo canto
E distancio qualquer mágoa ou pranto,
Dando passos, sem olhar para trás.
O importante é buscar outra direção
Conduzindo o amor em cada mão,
E dentro do peito o coração em paz.
Melchior Sezefredo Machado, por sua vez, investe no soneto lírico, acomodado aos padrões convencionais, porém, com domínio técnico de ritmo e metria, sempre na pauta confessional das emoções subjetivas. Numa tirada de conotação metalinguística, assim se expressa, em “Poeta ultrapassado”, à página 66:
Sou poeta do século passado,
Tradutor de ideias que nem vigem
Neste mundo presente, obcecado
Pelo ego… Viver me dá vertigem!
As paisagens mudaram e são frias:
Monumentos erguidos de concreto
E pessoas soberbas e vazias
Que não sabem de amor e nem de afeto.
Sou poeta, eu sei, ultrapassado,
Para o mundo voraz em que vivemos,
Onde o amor já não é considerado
Como um bem, que antes tínhamos sublime.
Mas eu amo, e creio que nós temos
O direito de amar… Nada o suprime!!!
Bira Delgado, Poeta Nascimento, Bebé de Natércio e outros traem seus vínculos quase sanguíneos com o cancioneiro popular, com a ordem da musicalidade e, às vezes, do espanto perceptivo, que integra o melhor tecido da tradição, da declamação e do repente.
Observo, em Bebé de Natércio, intensa inclinação pela oralidade e uma que outra insinuação dialógica com seus pares, a exemplo do registro desta estrofe (P. 17), a partir de um mote de Daudeth Bandeira, em que ecoa aquele típico nonsense de linhagem limeiriana:
Numa tarde cansadeira
Fui tomar “bae” no riacho
E uma aroeira de cacho
Tava cum a tremedeira.
Eu estando de bobeira
Comecei a matutar,
Botei força pra lascar,
Mas libertei o TROVÃO,
Fiz isso sem precisão,
Avalie se precisar.
Poeta Nascimento, em suas décimas em redondilha maior, evoca a natureza, motivo seminal e recorrente da poesia popular. A de número 5, à página 90, ilustra muito bem:
Eu canto a natureza
E também o firmamento
Sou o poeta Nascimento
Moro aqui na redondeza
A minha maior grandeza
É fazer verso e cantar
Meus poemas declamar
E a festa continua
Eu faço verso pra lua
Pro sol, o céu e o mar.
Já Bira Delgado, valendo-se da mesma forma poética, traz outro motivo emblemático do lirismo oral, para glosar, com singeleza e sensibilidade, um mote de Ramon Parente. Veja-se a décima “Saudade dói”, página 27:
A saudade é pontiaguda
Que dilacera coração,
Corta, rasga, tora botão,
Creio que seja graduada…
O que faz essa malvada
Me deixando no sofrimento,
Nos recortes do movimento
Vou tentar a formosura,
Saudade é uma costura
Na linha do pensamento.
Raniery Abrantes, como o faz Gilmar Leite Ferreira, não esconde a presença aguda de um Augusto dos Anjos, quer na batida métrica, quer no vocabulário, quer no sentimento do mundo, no melódico soneto “(Eu)na sombra de um morcego”, página 97, que, aqui, transcrevo:
Eu sou o que sozinho anda perdido,
Eu sou o que caminha mendigando.
Eu sou o que as dores saí cantando,
Eu sou o pergaminho encardido.
Eu sou um vil poeta entristecido,
Eu sou um corpo inerte entre as feras.
Eu sou os olhos negros das panteras,
Eu sou um assassino arrependido.
Eu sou o que pertence ao submundo,
Eu sou um vagabundo moribundo,
Um fantasma que vem de priscas Eras.
Eu sou o que se esconde numa sombra…
Na sombra de um morcego que me
assombra
Na torre do castelo das quimeras.
Maria da Paz, única voz feminina desta mostra, mesmo que situada no contexto da tradição oral e popular, apresenta, no minimalismo moderno do poema “Fê” (Página 48), um terceto, lacônico e eloquente, na sua irradiação semântica, senão vejamos:
Vi que ela deixou
lá na sala dos milagres
o lenço e a dor.
Cabral Abrantes, Marconi Araújo, Nelson Nunes Farias, Pedro Fernandes Araújo e Wellington Vicente completam, cada um à sua maneira e de acordo com os protocolos técnicos e literários que conduzem suas escolhas temáticas e estilísticas, a diversidade do acervo desse quiosque poético.
Temos, assim, perpassada esta mescla de poemas diversos, uma coletânea plural, um quadro de expressões diferentes e singulares, irmanadas, no entanto, pela dedicação e pelo amor à poesia, na sua manifestação mais espontânea, mais simples e mais natural.
Uma poesia cujas raízes advêm dos veios originais e que decanta os sentimentos do povo, na sua ingenuidade e na sua sabedoria. A essa poesia pouco importa a pauta dos dispositivos estéticos, defendidos e esposados pelas vertentes eruditas e experimentais. Pouco importa o cerebralismo, a erudição, a inventividade.
Diria mesmo que estamos diante de uma poesia que tem seu público especial, com suas demandas particulares, seus ouvintes e seus leitores. Uma poesia mais da fala que da escrita; uma poesia que passa ao largo de certas exigências de correntes teóricas modernas e de vanguarda, e, por isto mesmo, atenta, sobretudo, à presença e ao calor da emoção experimentada ao vivo nas tertúlias e nos recitais.
* Texto do professor, poeta e crítico literário, Hildeberto Barbosa Filho, no CORREIO DAS ARTES do mês de abril/2025.