Eu vi o povo
Francisco Gil Messias
gmessias@reitoria.ufpb.br
Pois é, o povo… Fala-se tanto nele. Principalmente os políticos, demagogos por natureza e instinto, pelo menos a maioria. É povo pra cá, povo pra lá. O povo isso, o povo aquilo. Povo povo povo. Haja povo. Nos planos de governo da situação e da oposição. Cada qual fala mais no povo, preocupa-se mais com o povo, promete mais ao … povo. Parece até que ele, o tal povo, é o senhor de tudo e de todos, quando na verdade não é senhor de nada nem de ninguém – nem de si mesmo, marionete que é, escravo que é desde sempre nas mãos dos eternos senhores, os mesmos de sempre, renovando-se a cada geração, cada vez mais ladinos na velha arte de “mudar alguma coisa para que tudo continue igual”.
Às vezes penso que para os cientistas políticos, os planejadores, os teóricos e os professores o povo é uma abstração. Um mero conceito, uma palavra descarnada, puro pensamento, como diria o poeta. Algo incorpóreo, invisível, sem cheiro e sem cor. Uma entidade criada no exclusivo âmbito do intelecto, com os fins mais diversos, geralmente inconfessáveis. Os imperadores da antiguidade falaram nele, os príncipes renascentistas também. Lincoln, Hitler, Mussolini, Lenin, Stalin, Mao, De Gaulle, Kennedy, Getúlio, Fidel, Juscelino, Jango, Pinochet, Médici, Tancredo etc etc, todos falaram nele, no povo, essa eterna ideia desossada na boca oportunista de qualquer um.
E quanto mais se fala nele, mais ele permanece o mesmo, igual a si: desvalido, despossuído, magro, feio, desengonçado, inculto, malvestido, sem emprego, sem renda, sem saúde, sobrevivendo – e não vivendo – de bicos, de biscates, de improvisações inverossímeis, de pequenas espertezas, pequenos furtos, quase nenhum brio, nenhuma dignidade, nenhuma altivez, o olhar baixo, submisso, servil, envergonhado, olhar de pedinte mesmo quando não pede, pois que o pedido é tácito, inerente à sua condição, nenhum futuro, nenhuma perspectiva, salvo a de reproduzir-se em novos pobres – e a inescapável de morrer cedo, quase sempre.
Não confundir, entretanto, povo com multidão. A filosofia os distingue. Segundo Hobbes, “o povo é um certo corpo e uma certa pessoa, à qual se pode atribuir uma só vontade e uma ação própria; ao passo que não é possível dizer nada de parecido da multidão.”. O francês Sponville acrescenta: “um povo só é de fato ele mesmo numa democracia, e por meio dela. Os déspotas só reinam sobre uma multidão.”. Depreende-se, portanto, que o povo tem uma vontade que se expressa na democracia, enquanto que a multidão, não. Mas será assim? Terá o povo realmente uma vontade própria, autônoma, ou será sempre, pelo menos nos países subdesenvolvidos, manipulado, enganado e comprado? Ou seja: terá sempre sua vontade amoldada, sem perceber, aos interesses daqueles que o exploram e dominam.
Não pense o leitor que tudo isso é conversa ideológica ou partidária. Longe disso. É apenas o fruto incontornável de uma contemplação urbana que fiz há poucos dias no Centro de nossa aldeia, mais precisamente na Duque de Caxias, entre a Praça João Pessoa e o Ponto de Cem Réis, trecho tomado literalmente pelo que podemos talvez chamar de povo – ou talvez de simples multidão. A gente anônima e visivelmente sofrida que aos poucos foi ocupando aquela área abandonada pela classe média e os poucos ricos de nossa velha urbe. A burguesia que se voltou para a praia inteiramente, como tem acontecido nas cidades litorâneas em geral.
Naquele pequeno trecho da outrora importante rua comercial e residencial, reina hoje a degradação. E nela habita o povo – ou a multidão. Sente-se perfeitamente no ar o abandono estatal. As pessoas, homens e mulheres, velhos e moços, espalhadas pelo calçadão, como um rebanho sem pastor, ao Deus-dará. Uns vendendo frutas, outros, miçangas, mais alguns numa fila qualquer, pois que o povo vive em filas, sejam de que tipo for, esperando como quem espera Godot (aquele que nunca vem). Sem falar nos que apenas andam sem destino, de um lado para outro, perdidos. Boa parte das lojas fechada, as portas arriadas e tomadas de bárbaras pichações. O comércio sobrevivente é explicitamente popular, voltado para sua empobrecida clientela eventual. Ali não há sinal de luxo nem de glamour, mas somente do atendimento às mais básicas e simples necessidades humanas. Tudo é do povo, para o povo e pelo povo. Parece até discurso de um candidato qualquer. Provavelmente um farsante aproveitador querendo se dar bem na vida às custas do ...povo. Ali, vê-se logo, a cidadania passou longe. Não há cidadãos, mas súditos, vassalos, servos, talvez escravos.
Pois eu parei para contemplar esse povo. Rapidamente, para não chamar atenção, pois certamente seria considerado suspeito estar ali parado, a observar os desvalidos transeuntes. E também pelo meu arraigado receio burguês de ser de repente assaltado por alguém do ...povo.
Poucas vezes em minha vida o povo tomou corpo e deixou de ser um mero conceito. Naquele dia recente, posso dizer que vi o povo. O povo como ele é. Em sua triste e desamparada concretude. Quem quiser vê-lo também, é só ir lá na Duque de Caxias. Ele está lá, exposto em sua povoada solidão. Abandonado e, ao que parece, indiferente – ou entorpecido.
Todos os campos são obrigatórios - O e-mail não será exibido em seu comentário