Os três que não se curvaram ao ditador
Francisco Gil Messias
gmessias@reitoria.ufpb.br
A Academia Brasileira de Letras sempre cortejou os poderosos. Às vezes, com discrição, elegância; às vezes, com estardalhaço, despudor. Mas, sabemos, não é um vício exclusivo seu. As instituições em geral sofrem dessa fraqueza – ou esperteza, como queiram. Atrair para o seu seio o poder, a riqueza, o brilho, o prestígio, enfim, sob todas as suas formas. O povo, em sua experimentada sabedoria, costuma dizer que o rio só corre para o mar. Como se fosse inevitável e até mesmo natural esse encontro de grandezas. Os grandes se atraem e se abraçam e se amalgamam, não raro confundindo-se numa realidade só. O povo, que não é grande e nem tolo, observa tudo isso, todo esse movimento gravitacional , esse bailado amoroso, essa fusão quem sabe erótica, e daí tira suas conclusões, cria seus sábios ditados e sentenças.
Estamos agora em 1938. Getúlio Vargas, o ditador no auge de seu poder, acaba de publicar os primeiros volumes de seus discursos. Foram dezessete ao todo. E todos escritos por seus assessores. Nenhum feito, de cabo a rabo, pelo presidente. Ele se contentava, por fastio ou falta de tempo, a fornecer ao escriba apenas algumas ideias, algumas frases. E com isso, esse pouco material, o amanuense talentoso construía o edifício de oratória com que o chefe podia até arrebatar multidões. O ditador definitivamente não escrevia nem escreveu, salvo um diário nos idos de 1930, logo abandonado. Ninguém é obrigado a ser escritor. Ele não o era. E sabia.
A publicação desses volumes entediantes de discursos oficiais logo despertaram a cobiça de alguns acadêmicos da ABL. Solertes imortais, áulicos despudorados que viram diante de si a oportunidade de se aproximarem ainda mais do ditador, trazendo-o para o seu grêmio, onde todos mais ou menos igualar-se-iam sob o título comum de “confrade”. Acertadas as primeira tratativas com vistas ao grande feito, dirigiram-se ao palácio a fim de oficializarem o convite para que o não-escritor se candidatasse à vaga aberta com a morte do paulista Alcântara Machado. Só não contavam com a probidade presidencial. Pois Getúlio respondeu-lhes, incontinenti: “Não sou um escritor de ofício. Não fica bem que me candidate.”. Vejam só. O beneficiário do convite enxergou claramente o impedimento ético da empreitada, seu escandaloso absurdo moral e literário, mas não os sábios que o queriam junto a si, de qualquer jeito, para melhor fruí-lo em suas inesgotáveis potencialidades.
Rapidamente encontraram a solução para o impasse. Se o presidente tinha pudores de se candidatar, por que não elegê-lo por aclamação, sem que ele movesse uma palha? Mas tinha uma pedra no meio do caminho, uma enorme pedra estatutária: as normas internas da entidade não previam a modalidade de ingresso por aclamação. Não seja por isso, alguém objetou, altera-se o estatuto e aclama-se o novel acadêmico que nada escreve e, ao que parece, nada lê, por fastio ou falta de tempo, compreende-se. E assim é feito. E assim Getúlio entra para a egrégia corporação.
Mas não teve a unanimidade dos votos, para a salvaguarda da honra nacional. Três honrados acadêmicos recusaram-lhe corajosamente o voto bajulador. Três votos foram em branco. Briosamente em branco. Os de Otávio Mangabeira, Afrânio Peixoto e Miguel Osório de Almeida. Votos em branco, de uma pureza e de uma altivez cívicas poucas vezes vistas em nossa história imperial e republicana. Cada qual desses três resistentes teve a sua razão pessoal para negar o voto ao ditador, razão maior ou menor, não importa, mas, acima de tudo, cada qual teve destemor para enfrentar de peito aberto, sem subterfúgios, o homem que então detinha poderes de vida e morte sobre os brasileiros.
Uma vez eleito Getúlio e alcançado o intento dos áulicos eruditos, tratou-se de fazer voltar o estatuto da Casa à redação original, ou seja, sem a previsão de entrada por aclamação. Corrigia-se o casuísmo adulador, como quem trata de esconder a arma de um crime. Mas a emenda, definitivamente, saiu pior que o soneto. Teria sido menos constrangedor para todos, inclusive o ditador, se tivessem deixado as coisas como estavam, sem essa desmascaradora retificação da infâmia.
E pensar que entre os eleitores do presidente estavam escritores respeitados, como Cassiano Ricardo, Menotti del Pichia e Pedro Calmon, entre outros. Getúlio foi eleito em 1941. Quatro anos depois, deixou o poder, deposto pelos militares, com o fim da Segunda Guerra e consequente redemocratização do Brasil. É de se perguntar então: fora do governo, praticamente exilado e esquecido em sua longínqua fazenda nos pampas gaúchos, sem nenhuma possibilidade real de conceder benesses a ninguém, lembrar-se-ia alguém de propô-lo para a Academia?
Mas celebremos: três brasileiros decentes não se curvaram ao ditador. É o bastante.
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