HIPOCRISIA
E MAQUIAVELISMO
Clemente Rosas
Já lidei, em
texto anterior, com o primeiro destes conceitos, que o velho Machado de Assis,
elegantemente, define como uma homenagem que o vício presta à virtude. Mas
fiquemos com a acepção dicionarizada: afetação de uma virtude que não se tem.
Ou, mais simplesmente, uma falsa devoção.
Já o
segundo, que abordo agora pela primeira vez, é entendido como velhacaria,
ausência de princípios éticos, mas, essencialmente, como um conjunto de normas
para conquistar e manter o poder político, com completa isenção de balizamentos
morais.
Essas considerações
me surgem ao observar o quadro político do nosso país nos últimos tempos. São frequentes as condenações enfáticas a
“qualquer tipo de censura” em manifestações públicas, as defesas inflamadas da
“inteira liberdade de pronunciamento dos parlamentares”, o repúdio a qualquer
tentativa de regulamentação das chamadas “redes sociais”. Tudo a pretexto da
sagrada liberdade de expressão. Mas as coisas não são assim tão simples como
parecem.
Deixo ao
juízo dos leitores as homenagens à virtude e as artimanhas para escalar os
píncaros do poder que podem ser deduzidas das atitudes que passo a
comentar. Até mesmo porque seus
personagens são pessoas experientes, bem vividas na política, que talvez apenas
não tenham plena consciência das implicações de seus gestos.
Comecemos
pela questão da censura, cuja condenação incondicionada é, no mínimo,
simplória. Pois ela existe, embora com o rótulo mais brando de “disciplinamento”,
em qualquer ato da comunicação humana. Alguns exemplos: 1) Na televisão aberta
não se permite, a qualquer hora, cenas de sexo explícito, incitações ao crime,
proclamações de nazismo, ou de antissemitismo. 2) Há limites de volume de som
para manifestações públicas. 3) O “bullying” nas escolas é reprimido e
condenado. Portanto, est modus in rebus: a rejeição absoluta e
incondicionada da censura, seria ela apenas ingênua, ou maliciosa?
Passemos ao
segundo tema. O bom entendimento do
princípio constitucional da inviolabilidade dos parlamentares em
pronunciamentos no exercício de sua atividade não implica permissão para
injuriar, caluniar ou difamar qualquer cidadão. Pois os artigos do Código Penal
que tratam dos crimes contra a honra não foram revogados, nem explícita nem
implicitamente, pela nossa Carta Magna: são anteriores a ela, e por ela foram
“recepcionados”. Outro, portanto, é o sentido da saudável regra da livre
expressão dos parlamentares. Pergunta-se: há mais alguma intenção, velada, na
defesa cega das agressões sofridas pelos próprios companheiros dos
parlamentares, e por autoridades dos outros poderes da República?
Finalmente,
chegamos às “redes sociais”, cuja regulamentação vem merecendo a condenação de
muita gente boa. E comecemos por explorar duas das suas características: a
celeridade e a capilaridade. Nenhuma
outra forma de comunicação tem a velocidade das redes, nem a universalidade do seu
alcance. O que leva à conclusão de que os crimes cometidos através delas –
injúrias, calúnias, difamações e “fake news”– consumam-se instantaneamente.
Punições posteriores serão inócuas: o mal está feito, e sem remédio. Por outro
lado, se as administradoras das redes não assumem responsabilidade pelo que
divulgam, temos uma situação abstrusa: uma prestadora de serviços indiferente, amoral,
que faz pouco caso do que fornece: ouro ou lixo. E deveria ser assim mesmo? Se
tudo em nossa vida social é regulamentado, por que as tais redes não podem ser?
Num esforço
de compreensão do que parece constituir um conjunto articulado de falsas
devoções, caberia a pergunta: cui prodest? Não me parecem ser beneficiários de tais
princípios os verdadeiros democratas. Uma boa prova disso tivemos recentemente,
em um conclave na cidade de Fortaleza com a presença de próceres da nossa extrema
direita, para que especialistas operadores das redes sociais ensinassem como
usar seus recursos para fins político-eleitoreiros.Pretende-se, assim, aperfeiçoar
o que já vem sendo feito, com resultados nem sempre positivos: há alguns
processos em curso, e até condenações pelos excessos cometidos.
Em
consequência da reação da nossa Suprema Corte - mesmo com as limitações do
“status quo” atual - os falsos devotos agora ensaiam um ataque à distância, na
perspectiva ilusória de mobilizar instituições externas ou internacionais para
destruí-la. Não percebem que tal
desiderato é vão, pela estrutura do Supremo Tribunal Federal e pelo sistema
como é composto. Que tem imperfeições, é claro, mas não difere muito de outros
modelos, mundo afora. A não ser que se pudesse fazer aqui como na Venezuela,
onde o ditador Maduro dissolveu o supremo tribunal do país e formou outro, só
com os seus cupinchas, que avalizaram até uma eleição comprovadamente fraudada.
Uma última
advertência: com uma hipotética conquista do poder pelos autoproclamados
democratas, o que poderemos esperar?
Temos um caso próximo a nos servir de modelo, no nosso vizinho americano.
Vão-se as devoções liberais, evidenciada a sua falsidade, e novos valores mais altos se alevantam:xenofobia,
misoginia, chauvinismo, preconceito, desprezo pela ciência e pelas instituições
republicanas...Quid rides? De te fabula narratur.
De minha
parte, não vejo como não demonstrar apoio ao nosso Supremo Tribunal Federal,
que, como instituição da República, merece todo o respeito em sua luta contra
as falsas devoções e a ausência de regras morais dos que ambicionam o poder.
Não cabem restrições individuais a alguns dos seus membros, ainda que criticáveis.
A todos eles, com ênfase especial àquele que tem sido mais vilipendiado pelo
seu protagonismo, prefiro dirigir a exortação de Rui Barbosa:
Medo,
venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito
conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse supremo, como
quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de
Pilatos! O bom ladrão salvou-se, mas não
há salvação para o juiz covarde.
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