DE ROMANCISTAS, BRASILEIROS E RUSSOS
Clemente Rosas
Uma
conferência sobre Dostoiévski, proferida no ciclo de palestras que a Fundação
Joaquim Nabuco promoveu, em colaboração com a Fundação
Astrojildo Pereira e o Centro Josué de Castro, a pretexto do centenário da
Revolução Russa, me trouxe à memória conversas que tive com o meu ilustre
conterrâneo Ariano Suassuna, sobre os mistérios da ficção literária e sua inserção
na história dos povos.
Argumentava
eu que a qualidade e a importância de um texto ficcional – e seu autor – têm a
ver com a circunstância do pioneirismo na abordagem de um determinado contexto
social e histórico, muito mais do que com o estilo de escritor. E dava como exemplo o livro “Menino de
Engenho”: uma narrativa linear, sem qualquer requinte, que se consagrou apenas
pelo fato de desvelar a realidade da vida social nos engenhos de açúcar do
Nordeste, em seu declínio. E Ariano
ponderou:
- Você já
leu “Fogo Morto”? Se tivesse lido, não
diria isso.
Li
depois. E, com efeito, constatei que a
obra prima de José Lins do Rego é muito mais do que uma simples narrativa. É uma verdadeira epopeia, envolvendo os
personagens de um mundo em desagregação: barões feudais, cangaceiros, servos da
gleba recém-saídos da escravidão, uns sucumbindo à mudança dos tempos, outros
poucos adaptando-se à modernidade desafiadora.
E Ariano completava, dando o exemplo de Dostoiévski: o valor de um
romance não está apenas na sua dimensão social, mas também na “força” dos
personagens.
Realmente,
os personagens do escritor russo são marcantes, tanto os femininos, exemplos de
dignidade e espírito de renúncia, quanto os masculinos, modelos de
impulsividade sem freios éticos, ou de miséria moral e marginalismo. E o nosso romancista nordestino admitiu que
alguns dos seus personagens (d’ A Pedra do Reino) são puramente
“dostoievskianos”.
Abrindo o
leque da conversa, arrisquei a observação de que há um tempo histórico
propício, em cada país, para o florescimento da literatura ficcional. No caso dos russos, teria sido a segunda
metade do século XIX. Lá estão Gógol,
Dostoiévski, Tolstoi, Tchecov, Turguêniev, Andreief. Em nosso caso, seria o século XX, a partir
dos anos 30, com a eclosão do romance regionalista de José Américo de Almeida,
Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz. Zé Américo e Zé Lins dissecando o universo
canavieiro, Jorge Amado retratando a civilização do cacau, Graciliano e Rachel
expondo a dura realidade dos sertanejos castigados pela seca.
No caso dos
russos, temos verdadeiros painelistas da vida social do czarismo, variando
apenas em motivações e temperamentos. Um
espírito atormentado e cheio de revolta, no caso do autor de “Crime e Castigo”.
Uma visão compassiva e empática, no caso do autor de “Ana Karênina”. Em Gógol e Tchecov, uma crítica dos costumes
de sua terra, ora finamente irônica, ora dolorosamente melancólica. Posso dizer que “Vanka”, de Tchecov, foi o
conto que mais me comoveu e impactou, em toda a minha vida.
Como
concluir? Mantenho a proposição de que
os romances têm o seu tempo histórico.
Hoje, com a multiplicidade dos meios de comunicação, quase não sobra
espaço para “muralistas” da vida social.
Caímos no fosso do romance urbano, intimista, quase sempre sombrio e
carregado de pessimismo. Confesso que
não simpatizo com o gênero, salvo em honrosas exceções, e nisso me identifico
também com o mestre Ariano.
Mergulhemos,
pois, nas crônicas, gênero essencialmente moderno, nos artigos, nos ensaios,
nas memórias. É o que se nos oferece,
enquanto aguardamos uma nova realidade desafiadora, que nos venha motivar para
voos mais longos.
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