Para o meu amigo Paulo Gustavo, brilhante membro da Academia
Pernambucana de Letras, lamentando não me incorporar ao grupo de
admiradores incondicionais do escritor francês, arvorado por ele em seu
belo e propedêutico livro, cujo título tomei por empréstimo. E quanto ao
livrinho, só me cabe recordar a lição de Terenciano Mauro: habent sua
fata libelli.
Em meu livro “Sonata de Outono” (Ed. Sal e Terra, J. Pessoa, 2022), rotulei
um capítulo como “Ensaios Irreverentes”. Nele, atrevi-me a criticar –
respeitosamente, é claro – monstros sagrados da nossa literatura, como
Ariano Suassuna, Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Mas minha tarefa
agora é ainda mais temerária: relativizar louvores e questionar algumas
virtudes de autor muito mais famoso, na verdade tão universalmente
enaltecido quanto pouco lido, como suponho.
Cabe-me declarar, de saída, o que talvez seja uma limitação em meu
mister: não consigo dissociar a obra do autor, nem tampouco do contexto
social em que foi escrita. Além do que assumo plenamente a postulação
de Ortega y Gasset: a clareza é a cortesia do pensador. Todos devemos
escrever para sermos bem lidos e compreendidos. E não apenas por um
grupo de privilegiados hermeneutas.
Mais uma ressalva: só escrevo quando sinto que tenho algum recado
importante a dar. E vejo com reserva aqueles que proclamam não poder
viver sem escrever, abstraindo a circunstância de serem lidos ou não. Vejo
isso como charme de escritor pretensioso. E recordo aqui a afirmação do
mestre Ariano, para quem a classe dos escritores é das mais vaidosas que
se conhece. Não vivo, portanto, acometido da “scribendi sacra fames” de
que fala Eça de Queiroz, em um dos seus ensaios de crítica literária.
Assim, espicaçado pelo livro de Paulo Gustavo, que tentou, sem sucesso,
ler Proust aos vinte anos, e só o conseguiu aos cinquenta, resolvi, já
octogenário, encarar a esfinge, sem medo de ser devorado. Meus poucos
leitores deverão levar em conta minhas razões, e sobretudo minha
honestidade de propósitos.
Li três livros de Proust, da série “Em Busca do Tempo Perdido”, que
muitos consideram um romance único, em oito volumes: “No Caminho de
Swann”, “À Sombra das Moças em Flor” e “Sodome et Gomorrhe”, este
último no original francês. Pelo esforço que exige a leitura de obra tão
caudalosa (diria também enxundiosa, pelas numerosas reflexões e
divagações que a permeiam), julguei que a amostra já estava de bom
tamanho para meu juízo crítico, e pus termo ao empenho de garimpar as
belezas e as verdades tão proclamadas pelos proustianos.
No livro “No Caminho de Swann”, meu embaraço começou com o título
do original: “Du côté de chez Swann”. Ora, a preposição “chez” significa
“na casa de”, ou “na obra de”, ou ainda “entre”. Em relação a “côté” não
cabe dúvida, quer dizer “lado”. Por que, então, “No Caminho de Swann”?
A tradução literal seria “Do lado da casa de Swann”, o que, no entanto,
não me parece adequado. Deixo a questão em aberto. E quanto ao texto,
me ficou apenas a imagem de um garoto enfermiço e manhoso, que não
conseguia dormir sem o beijo de boa-noite da mãe, ao lado da crônica do
namoro interminável, escrutado em numerosas páginas, do senhor
Charles Swann com a “cocote” Odette, cheio de incertezas, vacilações,
desencontros, sem motivações mais claras. Anos depois disso, o namoro,
igualmente vacilante e inseguro, do narrador, então já adolescente, com a
filha do casal, Gilberte.
Em “À sombra das Moças em Flor”, temos a temporada do narrador em
uma estação balneária, Balbec, na companhia da avó, e seu encontro com
um grupo alegre e desinibido de moças esportivas. A atitude do nosso
herói, mais uma vez, surpreende: parece mais preocupado com a avó, e
demonstra um interesse difuso para com as moças. Namora uma delas,
Albertine, mas se envolve também com outra, Andrée. E a relação com
Albertine é curiosa: ele a convoca a qualquer hora do dia ou da noite para
ir vê-lo e lhe fazer companhia no hotel, ou nas recepções dos grã-finos. E
ela comparece, embora sem carinho explícito, como se fosse uma
profissional do sexo.
Enfim, confesso que escolhi “Sodome et Gomorrhe”, como terceira
amostra da obra proustiana, pela fama dessas cidades bíblicas, e seu
histórico de pecados. Esperava encontrar uma boa dose de erotismo. Mas
que nada! O tema é tratado de forma extremamente discreta e
cerimoniosa. A questão do homossexualismo é abordada com simpatia e
compassividade, mas nos conceitos de “inversões” ou “vícios”, longe,
portanto, da atual compreensão de tais casos. O Barão de Charlus,
primeiro personagem do livro, flagrado em suposta reunião íntima com
um serviçal, avança na narrativa apenas com uma busca desesperada,
sempre mal sucedida, por jovens parceiros, ao ponto de anunciar um
duelo fictício para conquistar um deles. E quanto a Albertine, a
namorada, observada a roçar os seios com a amiga Andrée em uma dança,
apesar de negar peremptoriamente a condição homossexual, será sempre
objeto de desconfiança e de um obsessivo ciúme, por todo o relato.
Paradoxalmente, na frase final do livro, o narrador anuncia a decisão de
casar-se com ela.
Falando agora do conjunto da obra – com base, evidentemente, na minha
amostra – em seu aspecto formal, questiono a razão e a justificativa para
os longos períodos, de meia página, recheados de orações intercaladas, as
“frases centopeias”, na feliz expressão de Paulo Gustavo. Nelas, mesmo
um leitor persistente, como eu me considero, pode perder o sentido de
composição do enunciado. E a quase ausência de parágrafos complica
ainda mais a leitura. Quando a interrompemos, para o inevitável
descanso, temos dificuldade em encontrar o ponto certo da retomada.
Sofri com isso, vencendo meia dúzia de páginas de cada vez, sobretudo na
versão original, de leitura obviamente mais trabalhosa.
Seria a Busca, em seus oito volumes, um único romance? Fico com
Antônio Cândido, que a considera uma autobiografia, um extenso diário.
Digamos, conciliatoriamente, um romance autobiográfico. Aliás, os bons
romances têm sempre componentes autobiográficos, pois só se fala bem
do que se viveu. A narração na primeira pessoa, as reflexões e a própria
vida do autor, até onde se conhece, contribuem para esse entendimento.
Mas, reconheçamos, a definição de uma categoria literária não tem
relevância para o juízo de mérito do trabalho.
Meu foco se dirige, portanto, para a dimensão social, humana (para ser
mais abrangente), da obra. Observo que o escritor, na análise de seus
personagens, dedica-se apenas às classes sociais do patriciado: novos ricos
burgueses e aristocratas decadentes, ambos, apesar de tudo, ociosos e
endinheirados. A única personagem fora desse ambiente é a empregada
doméstica Françoise, de presença bem discreta no texto. Sobre os dois
primeiros, Proust é implacável: com ironia ou compaixão, disseca-lhes as
hipocrisias, as vaidades, o convencionalismo, as prevenções, o elitismo, as
ideias preconcebidas. Mas aí esgota-se o seu universo. E o mundo me
parece bem mais abrangente.
Ouso compará-lo com o microcosmo de Kazantzakis, em seu “Cristo
Recrucificado”. Ao descrever a vida de uma aldeia grega sob domínio
turco (seguindo a receita de Tolstói), ele trata de todos os dramas e
problemas da humanidade: ambição, desprendimento, misticismo,
idealismo, crueldade, covardia, bravura, amor e ódio. Foi o que não
encontrei em Proust, com todo o respeito pelas suas opções.
Interessante é observar que, tendo vivido no período da Terceira
República francesa, convivesse o autor quase exclusivamente com nobres:
barões, viscondes, condes, marquesas, duquesas, princesas. (Não
imaginava que tivessem sobrevivido a tantas convulsões políticas, entre
elas o doloroso trauma da Emigração). Mesmo sendo ele de origem
judaica, e sem título nobiliárquico. Os salões frequentados, tanto do
segmento social dos burgueses (Mme. Verdurin) quanto da nobreza
(Duquesa de Guermantes), eram seletivos, abrindo espaço apenas para
alguns artistas, em busca de prestígio.
Tomo, como exemplo do que ousaria chamar de “alienação” desse
pequeno núcleo de grã-finos que compõem o universo proustiano, o
famoso caso Dreyfus. É o único que tangencia o dito universo, expondo
uma divisão entre “dreyfusards”, aquelas pessoas de origem judaica
(acusadas preconceituosamente de estarem ao lado de Dreyfus apenas
por esta condição), e as demais “socialites”, cegas à absurda injustiça
cometida contra o bravo oficial, desonrado e só reabilitado vários anos
depois, pela vitoriosa campanha de Émile Zola, com o seu “J´accuse”). E
com isto, ao menos na amostra que escolhi, extingue-se a tênue inserção
do pequeno mundo proustiano no vasto mundo da sociedade europeia.
E aqui encerro também minha experiência com ele. Terei sido justo?
Coerente? Não me cabe o juízo em causa própria. Aspiro apenas ao
reconhecimento de minha sinceridade de intenções e do meu destemor
intelectual. E, quem sabe, não terei estimulado algum potencial leitor a
conferir minhas assertivas, lendo Proust?
Clemente Rosas
Todos os campos são obrigatórios - O e-mail não será exibido em seu comentário