Por Luís Pellegrini (jornalista e editor da revista Oásis).
"San Francisco virou cidade fantasma: a deterioração de centros urbanos nos EUA
16 de agosto de 2025
Toda a área central de San Francisco, assim como as de várias outras grandes cidades dos EUA, apresenta claros sinais de decadência e deterioração. O Tenderloin, coração da metrópole californiana, já foi o bairro mais amado pelos turistas. Era símbolo da opulência da cultura urbana norte-americana. Hoje está fantasmagórico, com lojas, livrarias, casas de espetáculo, bares e restaurantes fechados - resta só uma de cada três casas comerciais. Vagando pelas ruas e logradouros, sobraram moradores de rua e viciados em drogas. A Velha San Francisco tornou-se uma cidade fantasma, uma ghost city, como agora a chamam os seus próprios moradores.
Meu velho amigo Gianni Sarto, italiano com quem na já distante década de 1980 trabalhei durante um mês na Universidade de San Francisco, em programa de pesquisa na área da biopsicoenergética, voltou há pouco de lá para a sua Roma natal. É ele quem me escreve: “A última vez que estive lá, há uns cinco anos, pouco antes da pandemia, só vi um viciado, caído na calçada sob as vitrines da joalheria Tourneau. Hoje, as ruas do bairro estão cheias de viciados, mas já não existe nem a Tourneau nem os seus Rolex. A imensa maioria das outras lojas do Westfield Centre, outrora vitrine de Market Street, também fechou. Dos três andares de marcas reluzentes, resiste apenas uma H&M com um estoque mais búlgaro que americano - roupas bege, de poliéster, em promoção de até 70% - e pouco mais”.
E continua Gianni: “Você se lembra das poltronas antiestresse que existiam nessas lojas? Antes eram disputadas por clientes enquanto aguardavam o acompanhante terminar as compras, agora estão fora de uso, ocupadas por sem-teto. E me pergunto, caro Luis, se existe uma palavra única para descrever a soma de cheiros de sujeira, suor e urina que aqui é agora tão onipresente. Não existe de verdade, mas descobri que a substância resultante da decomposição dessas proteínas humanas se chama cadaverina, o que já dá uma boa ideia”. Bem, Gianni é biólogo, de odores se ne intende.
Amei San Francisco de verdade. Fiquei tão espantado com o relato de meu amigo sobre o estado atual do seu centro histórico que fui pesquisar um pouco a respeito. O Google está repleto de informação. Relatam que, nos três quarteirões até Union Square, restam quase exclusivamente vitrines vazias, com enormes e empoeirados cartazes “For lease” (para alugar). Mas para quem? Gap e Uniqlo, no segmento médio, e Barney’s New York e Saks Fifth Avenue, no segmento de luxo, também fecharam as portas. Cerca de metade das lojas desapareceram nos últimos cinco anos.
Como isso foi possível? – O processo de degeneração de San Francisco era real, mas lento, tipo devagar e sempre. Aí veio a Covid. Ela mudou as regras dos abrigos para sem-teto, reduzindo pela metade a capacidade e lançando muitos deles às ruas. Em reportagem sobre o tema publicada recentemente no jornal Reppubblica, o jornalista italiano Riccardo Staglianò relata que, com medo de adoecer e sem poder entrar nem num Starbucks para carregar o celular ou numa biblioteca para ir ao banheiro, muitos viciados de San Francisco perderam completamente o rumo. Apenas o fentanil conseguia fazê-los esquecer - ao preço de destruir os seus cérebros.
Staglianò descobriu que aquela postura encurvada de muitas pessoas que ele encontrou nas ruas tem nome: fentanyl fold - curvadas para frente, com cabeça e tronco pendendo, como marionetes com os fios cortados, porque o potente opiáceo reduz a atividade cerebral e muscular, inclusive a capacidade de manter a postura, fazendo o corpo colapsar sobre si mesmo.
E relata Staglianò: “Muitos comércios em San Francisco começaram a entrar em crise na pandemia, quando os aluguéis subiam, mas não havia clientes. Em 2020, fecharam 335 restaurantes; no ano seguinte, mais 530. Mesmo quando alguns turistas voltaram, os escritórios permaneceram meio vazios pelo trabalho remoto, que inicialmente empolgou a Big Tech com a promessa de economizar nos aluguéis - até a ordem em sentido contrário. No ano passado, recorde histórico: um a cada três escritórios estava vazio. Essa catástrofe imobiliária atingiu também hotéis: o histórico Civic Center Inn, anunciado por 21 milhões de dólares, foi vendido por 11 milhões só para encontrar comprador”.
Parece que, aproveitando ruas esvaziadas pelo confinamento e a polícia ocupada em fazê-lo cumprir, traficantes dominaram o Tenderloin, transformando quarteirões inteiros em mercados a céu aberto de drogas e produtos roubados. Sabemos bem o que isso significa, aqui em São Paulo temos a Cracolândia. Dois anos atrás, outro recorde: 806 mortes por overdose, a maioria concentrada aqui. Os moradores locais não são suficientes para manter as redes abertas: cerca de um terço vive na pobreza e a renda média do bairro, 44 mil dólares, é menos de um terço da média da cidade.
Com boas intenções, a prefeitura concentrou abrigos, refeitórios e clínicas, o que inevitavelmente atraiu mais sem-teto e dependentes químicos. Uma espécie de “fator de atração” que levou à guetificação. O marco simbólico foi quando, diante da prefeitura, ergueu-se um acampamento, e na Civic Plaza, próxima dali, um centro de metadona.
A prefeita democrata London Breed decretou o estado de emergência, aumentando o policiamento, e depois impôs um toque de recolher noturno para reduzir aglomerações de usuários diante de lojas de conveniência – medida que diminuiu crimes noturnos em 13%. Desde janeiro, o novo prefeito, Daniel Lurie, democrata mais centrista, promete converter escritórios vazios em moradias.
Mas, a bem da verdade, o que acontece no centro histórico de San Francisco é um problema bem mais amplo e multifacetado. Várias outras grandes cidades norte-americanas apresentam sintomas variados de desvitalização:
Da mesma forma que em San Francisco, também em Chicago e Nova York, varejistas tradicionais (Nordstrom, Walmart, Whole Foods, GAP, Macy’s) estão fechando lojas centrais em meio a desafios como insegurança, presença de moradores de rua e menor fluxo de trabalhadores no centro.
“Doom loop” e a fuga de escritórios - O afastamento do trabalho presencial intensificou a decadência de áreas centrais. Em Saint Louis, por exemplo, a saída de empresas deixou edifícios vazios, o que enfraqueceu ainda mais o comércio e os serviços locais.
Afundamento do solo (subsidência) - Estudos recentes revelam que cidades como Nova York, Chicago, Denver e outras estão sofrendo subsidência de 2 a 10 mm por ano, prejudicando fundações, pavimentos e aumentando o risco de inundações.
Desindustrialização histórica - Cidades do Rust Belt (como Detroit, Cleveland, Youngstown) ainda enfrentam os efeitos da perda de indústrias e população. Entre 2000 e 2020, Detroit perdeu mais de 30 % de sua população, e outras cidades da região entre 10 % e 35 % .
Infraestrutura envelhecida - Muitas cidades, incluindo Chicago e Philadelphia, enfrentam problemas com sistemas de abastecimento de água, pontes, estradas e transporte público, e a falta de recursos públicos agrava a situação.
Desigualdade urbana e crises sociais - Há crescente falta de acesso à água potável, à moradia e serviços básicos em várias cidades, com impactos atrozes principalmente em comunidades negras e marginalizadas."
Materia do 257
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