Bairro antigo, Jaguaribe tem muitas histórias para contar. Uma das mais impressionantes talvez seja a de Amorosa, ocorrida lá pela segunda metade dos anos cinquenta, talvez 1957.
Na época, eu estava nos meus dez anos e sempre passava na frente daquela casinha humilde da rua Alberto de Brito, não muito distante da esquina da Av. Coremas. Fazia parte da minha trajetória de entrega de pão, ofício da padaria da família.
Pois foi ali, naquela casinha, que, um belo dia veio à tona um fato assombroso que abalou o bairro e a cidade. Um cativeiro doméstico.
Sem mais nem menos, foi descoberto que ali, havia muitos anos, uma senhora idosa – provavelmente amalucada – vinha mantendo em cativeiro, uma jovem, sua neta.
Trancada num quarto escuro desde criança, a moça parecia um bicho, ou pior, um monstro. Imunda, mal cheirosa, com unhas enormes e cabelos desgrenhados, não sabia falar e sua voz era um grunhido ininteligível. Não sei como se alimentava (provavelmente através de uma brecha na porta) e muito menos como fazia suas necessidades fisiológicas, mas o fato é que quem pôde vê-la na ocasião de sua libertação fez dela uma descrição apavorante.
E vieram as perguntas. Como foi possível um cativeiro doméstico demorar tanto tempo, numa casa contígua às casas vizinhas? E como, afinal, foi descoberto? Algum vizinho notou e fez a denúncia? Nunca soube, mas lembro do alvoroço provocado que, obviamente, teve direito à presença da polícia e da imprensa.
Consta que a alegação da avó para o cativeiro era que se tratava de uma criança traquina, desobediente, imprestável, que não ajudava em casa, e que só queria viver na rua.
Se essa foi a lógica da avó amalucada, o curioso é que não chamasse a neta por um nome pejorativo, ou desagradável, mas, muito pelo contrário, o nome com que a tratava era justamente: Amorosa. O nome real da jovem ninguém nunca soube (acho que nem a avó lembrava mais) e foi, ironicamente, o carinhoso apelido que prevaleceu nessa triste história do bairro e da cidade, devidamente registrado nos jornais da época.
Outra coisa que nunca vim a saber: o paradeiro de Amorosa e sua avó amalucada, depois do cativeiro descoberto. Possivelmente, hospital e asilo...
Não cheguei a ver Amorosa e a descrição que faço é do que ouvi na época do acontecido. Lembro só da multidão em frente à casa e dos rumores. Mas isso não me impediu de ter pesadelos com a sua figura. Num deles, ela me aparecia em todo o seu horror escatológico, agressiva, como se tivesse sido eu o culpado de seu cativeiro, eu, que não fui salvá-la. Noutro, era eu que me via na situação dela, cativo e deformado... Enfim.
Com o passar dos anos, a história de Amorosa foi sendo esquecida, mas, lá em casa, por muito tempo, a palavra e seu significado permaneceram: lembro que toda vez em que um de nós - criança da casa - se excedia nas brincadeiras de rua e se via sujo e mal cheiroso, era acusado com o apelido de “Amorosa” e jogado à força no banho.
Já adulto, vi um dia o filme de François Truffaut, “O garoto selvagem” (1970), e foi de Amorosa que lembrei. Só que o menino francês tinha ao menos a floresta livre como habitat, ao passo que a nossa Amorosa, coitada, nada, só quatro paredes imundas e os gritos da avó amalucada. Também me lembrei dela, mais tarde, ao assistir a “O enigma de Kaspar Hauser” de Werner Herzog (1974), este com mais incursões filosóficas e existenciais, bem típicas do cinema alemão, e nada condizentes com a simplicidade jaguaribense.
Mas, para terminar esta crônica de modo mais leve, já lá pelos nos anos noventa, eu estava, uma bela manhã, no baixo comércio de João Pessoa, comprando umas roupas e entrei numa loja qualquer. Depois de atendido, notei, na sacola, que a loja se chamava “Amorosa”. Curioso, pedi para falar com o gerente. Veio o próprio dono, um senhor de seus sessenta anos, e, depois dos bons dias de praxe, perguntei se ele era de João Pessoa. Disse que não, que era de Campina Grande, e que morava aqui havia uns oito anos. Depois de um “Ah, logo vi” que o deixou intrigado, contei-lhe a história de Amorosa, e ele, entre surpreso e apreensivo, esboçou um sorriso amarelo.
Ao sairmos, minha esposa me censurou gravemente por ter contado a história de Amorosa ao proprietário de uma loja que tinha o seu nome. Mas, fazer o quê? Não resisti. Acho que foi só uma forma maldosa de puxar minha infância para o presente... Depois de certa idade, a gente sente saudade até das aflições antigas.
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