Por: | 03/10/2025
ACOMPANHANTE
Muitos foram os fatores que fizeram minha cinefilia. Um engraçado e bem típico da época aconteceu entre a minha infância e primeira adolescência. Foi quando me tornei “acompanhante”.
Explico. Naquela época, anos cinquenta, acompanhante era aquela pessoa que ia a cinema com a função de fazer companhia a um casal de namorados, cujos pais não permitiam que os dois pombinhos fossem sós.
Para a mentalidade puritana das boas
famílias de então, o escurinho do cinema era perigoso – espaço clandestino onde tudo podia acontecer. Até porque outras alternativas de locais para troca de afagos mais ousados eram, então, raríssimas. Namorados aceitos em casa pela família eram mantidos no terraço, ou mesmo na calçada da casa, sempre vigiados por um espião: pai, mãe, tia, avó, ou irmãos.
Meu primeiro papel efetivo de acompanhante aconteceu em torno de 1954, eu com apenas oito anos de idade. Do lado esquerdo da nossa casa (Rua Alberto de Brito, Jaguaribe) moravam umas três ou quatro moças solteiras, com uma mãe viúva, zelosa e meio rabugenta. Nevinha era a mais velha delas, e nem por isso menos vigiada.
Pois Nevinha me tomava emprestado como acompanhante, e vi muitos filmes com ela e um seu namorado secreto. E, vejam que maravilha, o programa era mais extenso que a sessão de cinema. Era assim: com os devidos consentimentos, da mãe dela e da minha, Nevinha me pegava lá em casa, logo cedo, digamos às quatro da tarde, com o pretexto de visitar uma amiga, ou fazer compras, ou coisa assim. E aí íamos ao centro da cidade onde ela, sem a família saber - e o segredo eu devia guardar – encontrava esse namorado proibido, e, com ele passávamos o resto da tarde. Os pontos visitados podiam ser a Lagoa, a Bica, ou a Praça João Pessoa, qualquer lugar onde os dois se curtissem, e eu me entretivesse brincando.
Depois, claro, tinha que haver um lanchinho, pois a sessão de cinema só acontecia à noite, geralmente no Cine Jaguaribe. Como esperado, no cinema eu sentava lá na frente, onde, míope, sempre gostei de sentar, e o casalzinho de pombos lá atrás... E só Deus sabe o que acontecia lá atrás. Deus e talvez o fiscal do cinema.
Para mim, era a glória: passear, lanchar e ir ao cinema sem nada pagar. Não podia haver programa melhor, e desempenhava meu papel de acompanhante com a devida – digamos – diplomacia.
Vi muitos filmes com Nevinha e seu namorado fortuito, mas lembro que uma vez estraguei o barato do casal. É que, no meio da sessão – uma chanchada nacional que não recordo bem – me bateu uma dor de dente da gota serena, e tivemos que ir pra casa antes de a fita terminar, os namorados se despedindo no caminho de casa, de cara feia.
Desses filmes vistos com Nevinha e seu namorado fortuito, um que nunca esqueci foi aquele documentário sobre o caso da índia Diacuí, que se casara com um homem branco e fora morar no mundo civilizado, e parece, não se adaptara. Para um garoto da minha idade, o que chamou a atenção foi, nas cenas na Amazônia, a nudez dos índios e das índias, coisa que eu nunca vira, nem em fotografia. Anos depois, mais crescidinho e mais malicioso, fazia inveja aos amigos, dizendo que tinha visto um filme em que todo mundo aparecia nu.
Os próximos casais que passei a acompanhar foram minhas irmãs e respectivos namorados. Com Gilda e Osias não fomos muito a cinema, mas, em compensação, Osias nos legou um caderno que me deixou maravilhado. Com caligrafia primorosa, ele anotava, um por um, os filmes a que assistia, incluindo título, alguns nomes do elenco e a companhia produtora. Acho que foi ele o primeiro cinéfilo que conheci na minha vida. Uma pena que o namoro com minha irmã durou pouco.
Em seguida vieram Genilda e seu namorado Jackson. Com eles vi muitos filmes nos três cinemas do bairro, Santo Antônio, São José e Jaguaribe. Inesquecível, por exemplo, a sessão de “Sissi” (1960), no Cine São José, com a sala de exibição superlotada, o pessoal da vizinhança trazendo, com a devida permissão do gerente, suas cadeiras de casa.
Foi com eles que assisti ao meu primeiro “impróprio até dezoito anos”. Tinha acabado de estrear, no Plaza, um filme que estava dando o que falar pela ousadia da temática – “Amores clandestinos” e o título já dizia tudo. Loucos para ver o filme, Genilda e Jackson precisavam urgentemente de companhia. Eu já era, então, um garoto de catorze anos, e como era alto, com ligeiras entradas de calvície, óculos fundo de garrafa, a cara cravejada de espinhas, feioso, eles acharam que eu poderia ser aceito pela fiscalização do cinema. Combinamos o seguinte: eles comprariam só o meu ingresso, eu tentaria entrar, se o fiscal não me barrasse, eles entrariam depois de mim. E deu tudo certo.
Hoje em dia, “Amores clandestinos” passaria tranquilamente na sessão da tarde de qualquer canal televisivo. Outro dia, revendo-o em DVD, me reportei saudosamente àquele tempo inocente em que o conceito de “acompanhante de cinema” fazia sentido.