Por: | 12/10/2025
UM POEMA
(Na ocasião do lançamento de “Breves dias sem freio”, de Sérgio de Castro Pinto, reposto, aqui, minha leitura de um dos poemas do livro)
Já pensei em fazer, mas nunca fiz, uma seleção dos meus cem poemas mais queridos. Se fizesse por certo incluiria este, de Castro Pinto, que, toda vez que releio me (re)encanto:
o
jardineiro francisco g. da silva
não espalhas
em folhagem
a tua fala
tão avessa
à textura prolixa
das samambaias
do muito que podas
já vens podado
e o pouco que falas
não serve de unguento
às feridas expostas
do teu silêncio.
te arrancas como a urtigas
- abrupto, mas com cuidado –
as muitas que te queimam
enquanto calas.
e do tanto que regas,
medrou de ti
esse chapéu de palha:
corola que te empresta
um certo ar ensimesmado,
menos de homem
que de espantalho.
O título é prosaico de propósito e serve para assegurar o fundo documental do texto. Trata-se, sim, de um personagem verídico, um dos viventes municipais do poeta, no caso, um profissional que exerce o seu humilde ofício diário. É isso e não é só isso.
O retrato que, pela voz transformadora do poeta, nos chega vai bem mais além, ou melhor dizendo, mais fundo. É um retrato, sim, mas cheio de vida própria. Construído, não tanto pelo foco realista de um fotógrafo, mas um pouco mais pelo pincel inventivo de um artista plástico, ou, melhor ainda, pelo lápis mágico de um caricaturista genial.
Do jardim se tem a ideia de um lugar gracioso, encantador, paradisíaco, um locus amoenus qualquer. Um jardineiro descrito nesse contexto poderia “herdar” esses traços, mas não é o caso. O caminho retórico tomado é o da simbiose entre profissão e objeto de trabalho, porém, não de modo simétrico, nem tranquilo.
Não é própria do jardineiro, por exemplo, a prolixidade das samambaias. O que vai descrever o personagem, portanto, não é o ambiente de trabalho, mas o trabalho mesmo. A poda, tão frequentemente praticada, tem seu efeito: cria uma figura limitada, se não for noutro aspecto, na voz. O jardineiro fala pouco, e não adiantaria falar mais, pois esse mais não amenizaria suas dores.
O movimento físico não é conceituado, como se poderia esperar, de um dos aspectos agradáveis do jardim, mas justamente do mais ferino, a saber, as urtigas. Dor prolongada, já que estas ferem o personagem no longo tempo em que faz silêncio.
Por fim, um dos gestos do ofício – o de aguar as plantas – tem seu efeito sobre a figura do jardineiro, como se ele, e não as plantas, fosse regado: faz-lhe nascer o chapéu de palha que, se pode ser comparado a uma corola (elemento vegetal, como os outros), não o torna propriamente um homem, mas um espantalho, figura mais esperável num campo arado que num jardim florido
Não leio sem me comover. E não sei o que comove mais, se o personagem verídico imaginado, o personagem recriado pelo texto, ou a empatia visível entre personagem e autor. Possivelmente, as três coisas juntas.
Sim, a identificação entre autor e personagem, se não óbvia, é sugestiva. Notar como, nesse aspecto, o título (referência objetiva ao personagem verídico, iniciado pelo artigo definido “o”) se opõe ao texto, este todo construído em função conativa, ou seja, em segunda pessoal verbal dirigida ao personagem recriado. (Verbos em segunda pessoa: “falas”, “regas”, etc, e uso sistemático dos pronomes pessoais “te”, “ti”). É como se, no momento, da escrita, o poeta estivesse a falar com o seu jardineiro. Notando bem, há, na construção desse personagem, um quê, ao mesmo tempo, de doída entrega e de doce ironia. Lembra o Chaplin mudo. Faz chorar e faz rir.
Com certeza, um longo texto em prosa, que mimeticamente descrevesse o personagem, não nos traria – como o poema nos traz – a humana verdade do jardineiro Francisco G. da Silva.
Como vimos, na descrição do jardineiro, o menos (fala, gestos) prevalece sobre o mais. Até no único “milagre” textual – a floração do chapéu de palha – há algo de menos (“menos de homem que de espantalho”). Toda essa economia de traços e meios – como não? – ecoa a poética contida de Sérgio de Castro Pinto. E para o leitor habituado, reforça a identificação referida.
Aliás, para quem conhece o poeta e sua poesia, é possível mesmo cogitar de uma identificação mais ampla, de cariz ideológico, porém, deixo ao leitor tais extrapolações hermenêuticas.
Só sei que amo este poema, como amo a poucos.