Lembranças de 1968 e de um Jean-Luc Godard meio doidinho
Francisco Gil Messias
gmessias@reitoria.ufpb.br
Nos primeiros meses de 1968 eu era um garoto de 12 anos de idade e cursava os primeiros anos do ginasial no Colégio Estadual do Roger, então instalado no antigo prédio onde funcionara o Seminário Arquidiocesano, por trás da Igreja São Francisco. Não tinha, pois, maturidade nem conhecimento para sequer ter uma ideia do que estava acontecendo em Paris naquele momento e depois se espalhou por vários países do Ocidente, como, digamos, uma “revolução comportamental”. Daí que as lembranças de que falarei a seguir, sucintamente, não são minhas, mas de uma então jovem testemunha ocular daqueles acontecimentos parisienses, a atriz Anne Wiazemsky (1947-2017), que posteriormente publicou o livro Un An Après, traduzido aqui no Brasil por Júlia da Rosa Simões com o título de Um ano depois (Editora Todavia, São Paulo, 2018).
A autora era neta do célebre escritor francês François Mauriac (Prêmio Nobel), e em 1968 vivia com o cineasta franco-suiço Jean-Luc Godard. Portanto, entre o “conservadorismo” do avô, reconhecido seguidor de De Gaulle, então presidente da França, e a “rebeldia” contestatória do marido, que logo juntou-se aos estudantes iniciadores do famoso “movimento”, ela não só viu de perto como participou em alguma medida da “onda” que terminou entrando para a História como um divisor de águas em vários aspectos, principalmente quanto ao comportamento dos mais jovens.
Da leitura do livro, pode-se concluir – ou destacar - alguns pontos, ao gosto do freguês, como sempre. Sabemos que muito já se escreveu e publicou sobre aquela época, com diferentes pontos de vista, aumentando ou diminuindo o protagonismo de pessoas e instituições, e se interpretando, sob diferentes ângulos, as causas, o decorrer e as consequências daqueles meses ebulientes.
Os pontos que, como leitor, me chamaram a atenção não constituem novidade, pois certamente já foram destacados por outros mais autorizados em falas e publicações sobre esse tema tão rico e aparentemente inesgotável, a ponto de o nosso Zuenir Ventura ter dado ao seu famoso livro o título de 1968 – O ano que não terminou (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1989). De qualquer modo, quero compartilhá-los com o leitor, até como forma de melhor fixar minhas impressões. Vamos lá então.
Se os estudantes, universitários e secundaristas, foram os atores mais numerosos e entusiasmados dos protestos que culminaram naquele maio histórico, não quer isso dizer que foram os únicos. Sabe-se que com o correr dos dias – e provavelmente estimulados pela inicial inépcia do governo francês de compreender e conter o movimento em seu nascedouro – outros segmentos sociais e profissionais foram também manifestando suas respectivas insatisfações, através de greves, passeatas, confrontos com as forças policiais e às vezes até com vandalismo, tais como os professores, os artistas, os intelectuais de esquerda, os operários de fábricas e trabalhadores em geral, sem falar nos desocupados de todas as espécies, que sempre se aproveitam para se integrar às multidões nessas ocasiões tumultuosas. Houve, portanto, uma generalização contestatória, como se boa parcela da sociedade parisiense e das redondezas tivesse, de repente, resolvido extravasar as mágoas e frustrações, numa espécie de catarse coletiva, que ninguém sabia bem como começara e muito menos como acabaria. Para não poucos sonhadores ou simples lunáticos, a utopia finalmente parecia ter chegado, cumprindo-lhes então implantá-la e fruí-la, quem sabe, dirigi-la, se é que ela comportaria dirigentes ou algo parecido, já que todas as formas de poder estavam sendo contestadas.
Ao que tudo indica, não existia um comando unificado e central dos manifestantes como um todo nem dos diversos segmentos individualizados. Não havia igualmente, tanto no todo como nas partes, entendimento quanto aos objetivos a serem alcançados nem quanto às estratégias pertinentes, o que tornava tudo mais ou menos caótico e imprevisível, como costuma ocorrer nessas situações improvisadas. O então desconhecido e depois célebre Daniel Cohn-Bendit surgira de repente como líder estudantil, mas não era o único, pois, como dito, os diversos grupos que protestavam simultaneamente, mas por razões e metas diferentes, possuíam suas próprias lideranças. Mas não há dúvida, porém, de que o ruivo Cohn-Bendit tornou-se o mais famoso até hoje.
A autora, na então condição de esposa do cineasta Jean-Luc Godard, acompanhou de perto a participação do marido naqueles dias. Seu relato, até prova em contrário, possui credibilidade, a despeito da subjetividade inerente a todo olhar humano. Após a leitura de seu livro, sinceramente fiquei sem saber enquadrar o Godard de 1968 como utopista ou lunático – pelo menos durante alguns momentos daquele período. Com todo respeito.
Anne Wiazemsky conta, entre outras coisas, a delirante afirmação feita pelo cineasta numa TV canadense à época: “Não somos mais artistas, somos porta-vozes para trazer a Revolução, para que tudo não aconteça sempre do mesmo jeito, para que a televisão pertença a todo mundo.”. Ele estava na região de Quebec para fazer uma filmagem. Ele também decidiu não mais assinar seus futuros filmes exclusivamente com seu nome, mas com o nome coletivo Dziga Vertov (nome de um cineasta experimental soviético). A seguir, até ensaiou renunciar ao sobrenome Godard. Vejam só.
E para completar, na atmosfera libertária em que vivia o casal, o cineasta tinha frequentes crises de ciúme da mulher, contrariando totalmente o espírito do momento. Nada de permitir que a esposa filmasse cenas de nudez. As outras atrizes podiam, mas Anne não. Paradoxal? Sim, mas compreensível. A possessividade dos amantes é universal e atemporal.
Os dias foram passando, os protestos foram arrefecendo à medida em que os vários segmentos celebravam acordos com o governo, instituições e empresas, e a própria população de Paris começou a revelar seu cansaço e seu enfado com a sujeira e a bagunça urbanas, assim como com a precariedade dos serviços públicos de todo tipo. Um mínimo de ordem, desde que não autoritária e truculenta, deixa saudades em muita gente, sabemos. Há pessoas que apreciam a pontualidade dos trens, por exemplo.
É certo que, ao final, a utopia não chegou - até porque ela foi criada para não chegar nunca e a graça dela está exatamente nisso -, a vida seguiu, mesmo que sobre outras bases, e nunca mais voltou a ser igual ao que fora, tornando-nos todos, em alguma medida, devedores daquele ano mítico, confuso e libertador.
Por ironia (ou não), em junho de 1968 ocorreram eleições na França e o presidente De Gaulle delas saiu robustecido. Aos poucos, Godard aparentemente recuperou seu equilíbrio mental, continuou a fazer cinema e separou-se de Anne Wiazemsky, falecida em 2017, aos setenta anos.
Fico a me perguntar se o mundo ainda produzirá outro ano como aquele.
Todos os campos são obrigatórios - O e-mail não será exibido em seu comentário