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O sionismo histórico e o uso do antissionismo como chave antissemita

Por: | 11/03/2024

O sionismo histórico e o uso do antissionismo como chave antissemita

Washington Rocha

 

O sentimento que levou ao surgimento do sionismo como movimento político organizado é muito antigo. Durante muitos séculos, por exemplo, desde a destruição do Templo de Jerusalém e diáspora, judeus espalhados pelo mundo entoaram a esperançosa oração: “Ano que vem em Jerusalém”. Estando os judeus espalhados por inúmeros países, aproximados a culturas diversas e divididos por interesses diversos; por isso mesmo, a organização e evolução do sionismo foram intensamente conturbadas. Houve refutação por parte de muitos judeus e, internamente ao movimento, dissensões e divisões mais ou menos agudas. Pelo início do século XX, quando já se fortaleciam ações de preparação para criação do Estado de Israel, foi muito ativa uma ala de extrema-direita liderada por Zeev Jabotynsky. Porém, haveria de ir prevalecendo a ala da esquerda-democrática, com o sionismo trabalhista (ou sionismo socialista) de líderes como Ben-Gurion e Golda Meir. Esse grupo político fundou o Mapai, partido sionista trabalhista filiado à Internacional Socialista/2ª Internacional. Este partido esteve no governo desde a fundação de Israel até 1968; por aí uns vinte anos. Durante este período as conquistas democráticas de Israel foram expressivas, podendo-se destacar o avanço na igualdade de gêneros e a experiência exitosa do socialismo dos kibutzim. Com efeito, o papel exponencial das mulheres em todas as esferas da sociedade israelense é reconhecido e celebrado por todo o mundo democrático. Quanto aos kibutzim, trata-se da maior e mais bem sucedida experiência comunal secular da história moderna.

Todavia, desde o fim dos anos 1960, o sionismo trabalhista entraria em declínio, dando espaço para partidos e movimentos políticos de direita. Em 1973 o partido direitista Likud assumiu o governo. Com as idas e vindas naturais no sistema eleitoral democrático, este Likud voltou ao governo em 1996 sob a chefia de Benjamin Netanyahu; que perdeu em 1999 e retornou em 2009. Para esse retorno e para se manter no poder, Netanyahu reuniu tudo o que havia de mais atrasado e violento em Israel; incluindo-se aí o judaísmo religioso ultra-ortodoxo e colonos expansionistas.

O que se pretende marcar com mais repetições do que todo mundo sabe é que os crimes de guerra ora perpetrados em Gaza não são de responsabilidade do sionismo, mas do atual governo de Israel.

Historicamente, o sionismo foi um movimento legítimo e vitorioso; tendo realizado o alto desiderato de construir uma nova Pátria para os judeus. Que em nome do sionismo promovam-se crimes de guerra é ilegítimo. Modo ilegítimo de proceder que, aliás, não é raro. Veja-se, por exemplo, os crimes cometidos pela Igreja Católica em nome do cristianismo; ou os crimes cometidos pela URSS ao tempo de Stalin em nome do marxismo. Também é ilegítimo usar os crimes de guerra do governo Netanyahu para vilipendiar todo o sionismo e invalidar moral e politicamente sua grande realização que foi a construção do Estado de Israel. Os que assim declaram, entendem que o Estado de Israel nunca deveria ter sido criado; subtendendo-se facilmente que deva deixar de existir (sendo que, às vezes, não é preciso subtender, pois expressamente declarado). Tal desejo de destruição configura violenta expressão de antissemitismo. Não se duvide de que só será possível por fim ao Estado de Israel através do extermínio de milhões de judeus.

Encaminho para o fim dessa segunda parte conversando com Archidy Picado Filho, que, pelo Facebook, respondeu ao primeiro artigo com uma refutação/reflexão que considero importante. Eis o que disse Archidy:

   “Erguer um lar é diferente de voltar ao lar de origem. Porém, judeus ou não, todos foram posseiros, já que em essência não há cercas, quintais e muito menos fronteiras que determinam quem são os "donos" da Terra. Por esta perspectiva, qualquer conflito pela posse de terras não tem outra explicação (e nenhuma justificativa) senão enquanto expressões da insanidade para a qual, ao que parece, não há remédio nem formas eficazes de preveni-la.”

Não discordo, apenas pondero: para os judeus, dispersos pelo mundo e perseguidos, foi o sentimento de apego a uma Pátria perdida um fator determinante para o acúmulo de forças necessário para a persistência na difícil empreitada. Certamente, “judeus ou não, todos foram posseiros”. Tais posseiros não quiseram construir um modo de convivência harmoniosa, nem tampouco chegaram a um acordo de partilha. Se na “essência” idealizada por Archidy “não há cerca, quintais e muito menos fronteiras”...; no mundo prosaico do egoísmo humano, tais divisões têm sido a regra desde o alvorecer das civilizações. Uma das mais belas canções, “Imagine” de John Lennon – que encantou gerações –, foi criada por amor a essa sublime essência a que a Humanidade talvez esteja destinada...; mas lá ainda não chegou.

Já antes de John Lennon, Marx e Engels haviam elaborado este sonho poético em extensa prosa; embora antecedido pelo pesadelo da violência revolucionária. O pesadelo de fato ocorreu, mas o sonho não se concretizou. Vejam que a principal refutação do marxismo – inclusive de muitos judeus marxistas – ao movimento sionista que se fortalecia pelo início do século XX baseava-se na convicção doutrinária de que a revolução proletária mundial não tardaria em acabar com toda sorte de opressão e perseguição no mundo. Não houve tal revolução; pelo contrário, o ódio e a perseguição antissemita exorbitaram na Europa. Enquanto a Pátria socialista, a União Soviética, sob domínio de Stalin, recuava do sonho do internacionalismo para a adoção pragmática da doutrina do “Socialismo em um só país”. Esse mesmo pragmatismo levou Stalin a manipular atávicas disposições antissemitas de certos setores da sociedade russa na sua luta contra a Oposição de Esquerda, liderada por Trotsky e onde atuavam muitos outros judeus. Ao perceber isto, Trotsky reagiu com grande amargura e ainda maior espanto. Vejam o que está registrado no artigo “A posição de Trotsky sobre o antissemitsmo, o sionismo e a questão judaica”, de Mario Kessler (disponível em movimentorevista.com.br):

“Em uma carta a Bukharin, em 4 de março de 1926, Trotsky protestou contra os tons antijudaicos de uma campanha de boatos: “É verdade, é possível que em nosso partido, em Moscou, nas CÉLULAS DOS TRABALHADORES, a agitação antissemita seja realizada impunemente?!””

(continua na próxima atualização desta Coluna Rocha100)


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