Areia de pote
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O passado ao sabor das conveniências do presente

Por: Francisco Gil Messias | 26/03/2024

O passado ao sabor das conveniências do presente

Francisco Gil Messias

gmessias@reitoria.ufpb.br


O passado em si não existe - porque já passou. Ele só existe enquanto construção do presente. E sendo assim, forçoso é aceitar que ele pode ser construído ao gosto do freguês. Daí os constantes revisionismos, em que o herói de hoje é o vilão de amanhã e vice-versa, de modo que é sempre recomendável muita cautela com o trabalho dos historiadores em geral e dos engajados em particular. Nesse meio, tanto há seriedade como má-fé, tanto há esforço de imparcialidade científica, como há deliberada exegese dos fatos de forma interessada – e até distorcida. A História flerta muito com a política – e não raro com a pura e simples malandragem. Todo cuidado é pouco, portanto.


Tudo é versão, sabemos. Para um lado e para outro, versão. E assim um mesmo fato é visto das mais diversas maneiras, a partir do ângulo do intérprete – ou de seu interesse. Tome-se um simples acidente de trânsito, por exemplo, e cada uma das testemunhas dará um depoimento diferente dos outros. Ao final, a autoridade (policial, judicial etc) decidirá qual será a “verdade” relativa ao acontecimento, ou seja, a versão oficial, que nem sempre prevalece sobre as versões “oficiosas”. Tudo é construção, reconstrução, imaginação – e até fantasia. A dita realidade passa longe, por inalcançável.


Darcy Ribeiro, num texto que escreveu em homenagem ao ex-presidente chileno Salvador Allende, afirma, com a credibilidade de quem assessorou de perto o estadista no período que precedeu as suas queda e morte, que ele pretendia realizar gradativa e pacificamente a transição para o socialismo, sabedor que era das resistências que sofria por parte de expressiva parcela da sociedade. Entretanto, foi vítima dos radicais de seu partido, gente exaltada e burra, que, não enxergando com clareza o cenário político do país, precipitou a reação dos adversários, com os resultados que conhecemos. É uma versão bastante razoável, acredito, até porque faz a crítica dos próprios partidários de Allende. Mas há outras que dela divergem significativamente, com ou sem aparente razão.


Aqui no Brasil, nos idos de 1964, tenho para mim que aconteceu processo semelhante relativamente à deposição do ex-presidente Goulart. Ele, que nunca foi radical de esquerda, até porque era latifundiário e milionário pecuarista, deixou-se levar pelos ensandecidos radicais que o cercavam, inclusive o próprio Darcy Ribeiro, e deu – ou ensaiou dar – o passo maior do que as pernas, em termos de reformas estruturais na política e na economia, precipitando o golpe que talvez pudesse ter sido adiado e até mesmo evitado, caso o andor tivesse ido mais devagar. Mas há quem pense diferente, claro. As versões de todos os lados estão aí, nas livrarias, à disposição dos leitores. Lembro-me de que fui chamado de “reacionário” ao apresentar este ponto de vista num evento na APL. O indiscreto acusador foi um próspero causídico, notório acumulador capitalista de bens. Vejam só. 


Voltando a 1964, completa-se agora 60 anos da tomada do poder pelos militares. Querendo-se ou não, uma data emblemática para a história recente do país. Mas pelo que tem sido noticiado, não haverá manifestação oficial a respeito. O governo parece ter optado pela cautela do silêncio, provocando, como seria de esperar, aprovações e protestos. Fizesse o contrário, seria a mesma coisa: aprovações e protestos. Com todo o respeito às vítimas da época e aos seus atuais descendentes, penso que a ponderada postura oficial é a que, no momento, melhor serve ao Brasil tão dividido ideologicamente dos nossos dias. E pergunto: a quem interessaria colocar mais lenha numa fogueira que já é grande? E que, pelo que se vê, continuará acesa ainda por bom tempo, se é que apagar-se-á um dia.


Não que se pretenda “esquecer” ou “apagar” o que aconteceu naqueles idos. O que houve, de bem e de mal, está registrado para sempre, sujeito permanentemente ao crivo dos estudiosos. Prudência pode ser covardia, mas também pode ser sabedoria. As circunstâncias é que decidem. E ignorar as circunstâncias, em todos os casos, é sempre falta de inteligência. 


Os radicalismos - de todos os tipos - nunca são bons conselheiros. A História está aí para provar. Salvo em situações extremas, que são raras, preservar-se o processo democrático e o seu ritmo de mudanças nem sempre rápido é, na maioria dos casos, o melhor caminho, aquele que menos traumas e sofrimentos causa à sociedade. Não há novidade neste entendimento, é óbvio, mas à vista da polarização desvairada, é sempre bom lembrá-lo.


O que está escrito acima é uma mera opinião de um cidadão anônimo. Outros cidadãos, anônimos ou empoderados, poderão pensar de forma igual ou não. A democracia permite e assegura essa diversidade de pensamento. O ruim – o insuportável mesmo – é o “pensamento único”, seja ele qual for, imposto a todos autoritariamente, de cima para baixo, goela adentro, do qual já tivemos, aqui e no mundo, exemplos mais do que suficientes.   


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