HÁ 55 ANOS, UMA NOITE PARA NÃO
ESQUECER
Clemente Rosas
Na noite do
dia 13 de dezembro de 1968, na casa do meu pai, em João Pessoa, em companhia
dele, do meu irmão Nelson e de sua esposa, eu bebia um cuba-libre e escutava o
rádio. Casa fechada, na penumbra, tentávamos conviver, da melhor forma, com a
dura situação vivida por todos nós desde abril de 1964. E foi assim que ouvimos
a decretação do Ato Institucional nº 5, a nos expor “a nudez forte da verdade”,
sem “o manto diáfano da fantasia” com que ainda se tentava dar foros de
legalismo ao Movimento Militar de 1964. Congresso fechado, Justiça manietada,
toda e qualquer garantia individual suspensa e, por consequência, prisões e
torturas avalizadas.
Meu irmão,
funcionário da Secretaria Assistente para trato dos conflitos entre camponeses
e proprietários na Zona da Mata pernambucana, após a noite dramática da
deposição do Governador Miguel Arraes, havia rumado para o campo, na ilusão de
mobilizar as massas camponesas em defesa da democracia. Logo percebendo a dura
realidade, conseguiu escapar, e após alguns dias, voltou de trem, incógnito, ao
Recife. Ficou pouco tempo no apartamento
de um primo, meu pai conseguiu transferi-lo para João Pessoa, abrigando-o na
granja de um tio, e em seguida na casa de uma velha tia-avó, já senil, que já
não dava conta da situação. Desta casa, distante umas três da de meus pais, é
que vinha ele, pulando os muros dos quintais de vizinhos amigos, para aquelas
confabulações noturnas. Seu último “valhacouto”, quando a repressão, sem ter
obtido sucesso, parecia dar uma trégua (minha mãe deixou de ser seguida, as
investidas à nossa casa de família cessaram) foi no sótão da casa de minha avó,
vizinha. Era de lá que ele, na companhia da esposa, passando para o telhado da
velha mansão, contemplava a noite sossegada e silenciosa da João Pessoa daquela
época, como lenitivo para seus dias solitários.
Depois de
algum tempo, meu irmão saiu de João Pessoa, viajando de ônibus, com falsa
identidade, para o Rio, onde conseguiu retomar o contato com o PCB. E lá viveu
longos anos na clandestinidade, a serviço do Partido. Nessa condição, esteve na
União Soviética, passou algum tempo no Estado do Paraná, até que, de volta ao
Rio e à vida legal, transferiu-se da Escola de Economia do Recife para a de
Niterói, onde concluiu o curso e logo passou a professor da mesma Faculdade.
Mas logo
voltaram os “ásperos tempos”. Após exterminar os grupos que se lançaram na luta
armada – ALN, PCBR, MR-8, PC do B, e outros – a Ditadura Militar voltou-se para
o velho PCB, que nunca havia mergulhado nessa aventura, tão romântica quanto
insensata, permanecendo apenas no trabalho de propaganda e aliciamento de
militantes para um sonhado restabelecimento da democracia. Dos dirigentes do
“Partidão”, os que não foram massacrados – entre estes Hiram Pereira, Davi
Capistrano e Luís Maranhão, excelentes pessoas humanas do meu conhecimento, até
hoje mortos sem sepultura – tiveram que emigrar. E Nelson Rosas, cuja
fisionomia era desconhecida da Repressão, teve de voltar à clandestinidade. Por
um tempo ainda no Rio, depois em Salvador, e finalmente, atravessando a
fronteira da Bolívia e se fixando em Portugal.
Lá, foi
professor de história das doutrinas econômicas, e conquistou um doutorado na
França, voltando ao Brasil vários anos depois, com a Anistia. Reassumiu sua cadeira na Universidade Fluminense
e transferiu-se, enfim, para a Universidade da Paraíba, onde se aposentou, com
o título de Professor Emérito. Foi, talvez, o último militante de esquerda a
deixar o país, quando nada mais podia ser feito aqui. Nunca foi preso, e para
os que “caíram”, tinha uma observação um tanto dolorosa, talvez injusta: heróis
foram os que não tiveram competência para fugir.
Meu pai,
que, ao lado de minha mãe, cuidou dos filhos dele em várias ocasiões, e o
apoiou financeiramente em seus primeiros tempos de exílio, teve seus dias de
maior sofrimento quando, viajando ao Rio com uma recomendação do velho José
Américo de Almeida para o filho, o General Reinaldo, tentaria uma cogitada
apresentação pacífica do meu irmão, que havia, penosamente, retomado a vida
legal. O General “garantiu” a integridade física dele, desde que ele
“colaborasse”. Mas nem o meu pai pediria isso para ele, nem o General tinha
condições de garantir nada, segundo apurou meu irmão. Nesses dias, meu pai, que
não chegou sequer a encontrar-se com meu irmão, por razões de extrema
segurança, apenas esperava, no hotel, que ele ligasse, numa sofrida situação de
impotência. Até que ele lhe comunicou a
decisão de desistir do plano e mergulhar de novo na clandestinidade. E o meu
velho voltou, acabrunhado, para casa.
Mas voltemos
à trevosa noite de dezembro de 1968. Após o desfile de horrores anunciado pelo
rádio, em que seus responsáveis “mandaram às favas todos
os escrúpulos de consciência”, meu pai rompeu o nosso silêncio com uma
observação:
- É. Agora não é mais tempo de beber.
É tempo de vomitar o que se bebeu.
Aquela foi,
portanto, uma noite cruel, que não teve aurora.
Durou dez anos. Por isso não podemos esquecê-la. Direi melhor: não temos o direito de
esquecê-la.
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