Por: | 01/07/2024
LETRA LÚDICA
Hildeberto Barbosa Filho
Mitos
Como sempre andei às voltas com a poesia, coube-me fabricar o meu país dos mitos. País que, hoje, revejo de longe, certo de que o passado passa e não passa, cristalizado nessa estranha dialética de viver.
Até
os meus oito ou dez anos me vi no meio do mato, cercado de bichos, solidão e pedras. Tinha meus deuses e meus demônios, meus reinos e minhas cavernas, meus riachos e minhas cacimbas.
Posso dizer que criei toda uma mitografia que me alimentou a imaginação e deu alguma solidez a meu caráter, já que o temperamento incontrolável sempre se perdia nos relâmpagos do conflito interior e da emoção insustentável.
Animais e criaturas participavam da mesma simetria venturosa de compartilhar os alaridos das coisas cotidianas. Nenhuma hierarquia estipulava diferenças no comportamento dos fenômenos que me preenchiam o corpo e a fantasia. Nenhuma nódoa nefasta manchava o chão simples de minha alma que se descobria para os artefatos da vida.
Vou dar nomes aos bois, a fim de que se organizem os fios dos objetos e dos seres encantados que povoaram as minhas regiões da infância. A infância, tempo em que se forma os sinais da percepção, o tecido da sensibilidade, a argamassa móvel da memória. A infância que Rainer Maria Rilke seleciona como tema sagrado e como repositório lírico dos mais férteis.
O boi Labirinto me deu a textura da força, da paciência e do repouso. Seus olhos molhados cultivavam a beleza das novilhas, enquanto seu corpo, quase dourado e robusto, pontificava, solitário e sublime, nas cercanias do curral. Foi o meu primeiro Deus, o primeiro bafejo do elemento sagrado.
A novilha Neblina me ensinou a umidade carnal dos primeiros poemas praticados à sombra dos umbuzeiros, no exercício solar do mais inocente paganismo. Se descobri a astúcia da beleza, o organismo misterioso das fibras animais, o sabor irrefreável de um êxtase desmedido, foi quando me apeguei à doçura agreste e semovente desse bicho encantado.
E Soberano, meu cavalo de menino? Alto, espadaúdo, musculoso, veloz como o uivo zangado dos ventos do Cariri. Foi meu mestre nas artes do equilíbrio e da disciplina, na pedagogia dos passeios rurais ou no brinquedo dominical da derrubada do boi. Se todo animal é mágico, como diz Drummond, meu alazão se enquadra perfeitamente nesse perfil. Cavalo que amei como se ama um bem de raiz, uma relíquia de família.
Outros mitos tomaram conta de mim e fizeram morada na geografia dos meus poemas. Habitam, assim, as planícies e os desfiladeiros que um texto pode conter no seu afã de falar a linguagem dos predicados secretos que constituem a viagem da recordação e do imaginário. Sem o mito, a poesia não vinga. A palavra fracassa.
Zé da Maleta, Nega Conga, Zé Padeiro, Tia Dona, Biu Marcolino, entre outros, conformam parte especial dessa humanidade, real e simbólica, que se estabelece no andamento de minha poesia. São criaturas de carne e osso, referências primordiais, presenças vivas na clareira lírica. Pedaços de minha instantânea eternidade.
No mais, resta a árida camada da terra, o fantástico complexo geodésico, as longas noites de inverno, o sol, soberbo e inclemente, calcinando fauna e flora, como um emblema secular que a tudo rege e vitaliza.
Não fora a junção desses personagens e o peso incontornável dessa topografia, com sua espessura mítica, a poesia secava nos toscos barreiros da prosa. O poema só se faz quando evoca os mitos.
(Crônica de ontem, publicada em A Uniao)