LAVOURA
ARCAICA: UMA LEITURA DESPRETENSIOSA
Clemente Rosas
De tanto
ouvir referências e louvores ao livro de Raduan Nassar, resolvi conhecer a tão
incensada obra. Não a achei fácil nas
livrarias, tive que encomendá-la, pagando uma parte antecipadamente. Após a
leitura, até certo ponto penosa, veio-me a ideia de comentar o romance. É o que tenho feito em vários textos que
costumo chamar de “ensaios irreverentes”, com o atrevimento de criticar
monstros sagrados da literatura brasileira e francesa, como Guimarães Rosa,
Clarice Lispector e Marcel Proust.
Mas desta
vez confesso o receio de ir além do alcance do meu bodoque: o homem é detentor
do Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa, ambicionado até,
declaradamente, por Ariano Suassuna. E esteve perto de receber também, em sua
tradução inglesa, o International Man Book Prize. A edição de que disponho, a
terceira, revista pelo autor, é também a 42ª impressão. Não tem prefácio, e traz
apenas, na segunda orelha, uma minibiografia. Na contracapa, uma referência
elogiosa do mestre Alceu Amoroso Lima.
Tudo isso dando uma medida do prestígio do autor, e também da sua
autoconfiança.
O livro é
quase todo um monólogo, com páginas inteiras sem parágrafos, e até sem o sinal
gráfico do ponto, ao não ser no fim dos capítulos. Assim, ele vai além do José Saramago, Prêmio
Nobel, que se limita em seus textos ao ponto e à vírgula. Começa com o narrador
isolado em um quarto, despido, fugido da família roceira sem motivação evidente. É encontrado por um irmão mais velho, que tem
a missão de resgatá-lo, mas a quem não é dada a palavra. Ao fim de vários
capítulos de monólogos, em que se entremostram, de forma camuflada, um caso de
incesto frustrado do narrador com a irmã mais velha, e um caso de zoofilia com
uma “namorada” cabrinha, o nosso herói aceita voltar à casa paterna.
Com esse
retorno, vem o primeiro capítulo em forma de diálogo, com o pai. O velho, conservador, dogmático e intolerante,
o filho expressando uma rebeldia difusa e de difícil compreensão. A
argumentação deste é tão cheia de oximoros e conceitos abstrusos que o leitor
comum tende a identificar-se com o velho. Vejamos: “Não acredito mais em troca
de pontos de vista”; “os resultados de um diálogo pra mim seriam sempre frutos
tardios, quando colhidos”; “fica mais feio o feio que consente o belo”; “nada
há mais espúrio do que o mérito” - afirmações do filho. “Não quero acreditar no
pouco que te entendo, meu filho”; “quero te entender, meu filho, mas já não
entendo nada”; - reações do pai. Para
terminar com um conselho paternal: “Já basta de extravagâncias, não prossiga
mais neste caminho, não se aproveitam teus discernimentos, existe anarquia no
teu pensamento, ponha um ponto na tua arrogância, seja simples no uso da
palavra!”. E com a réplica do filho, no mesmo estilo contraditório: “Se sou
confuso, se evito ser mais claro, pai, é que não quero criar mais
confusão”.
Segue-se um
novo diálogo com o irmão mais jovem, que também quer ir embora por “não
aguentar mais esta prisão”, nem “os sermões do pai”, nem “a vida parada desta
fazenda imunda”, virar mochileiro, conviver com prostitutas, ladrões e
mendigos. Antes, o narrador já demonstrara sua familiaridade e sua boa
disposição pela vida bucólica, ao regressar ao seio da família, falando com
simpatia sobre as lides do campo. Mas fica a impressão de simples veleidade, de
“wishfulthinking”, como dizem os de fala inglesa. E apenas consola e acaricia o
irmão caçula, em seus arroubos.
E vem enfim
a festa de confraternização pela volta do filho pródigo. E a descrição dos
eventos é tão extravagante que pode até ser tomada como uma alegoria, inclusive
porque, no capítulo seguinte, o último, transcreve-se um conselho edificante do
pai. Pois é o pai que, no desenrolar da festa, diante de uma dança sensual e
provocadora da filha mais velha, possesso de ódio, investe com um alfange
contra todo o grupo, matando a filha e levando todos ao desespero. E então?
Sou levado a
comparar a Lavoura Arcaica com a Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso.
Ambos os livros falam de uma situação familiar opressiva e destruidora. No
segundo caso, o opressor é um irmão mais velho, tradicionalista ao extremo, que
comanda a família mantendo permanentemente isolado em um quarto outro irmão,
homossexual, e reprime a jovem esposa, uma estranha naquele ambiente sombrio.
Lúcio Cardoso, ele próprio um homossexual, devia ter boa vivência do quadro que
descreve. Mas o faz de maneira clara, comovente, sem enigmas, sem linguagem
cifrada, sem metáforas inusitadas.
Recorro a
outro exemplo de ficção, digamos - à falta de melhor expressão - fantasiosa:
Franz Kafka. Seus romances descrevem episódios irreais: um homem que acorda
transformado num inseto repelente, outro que é vítima de um processo penal cuja
motivação nunca descobre. Mas a
narrativa flui sem tropeços, prendendo o leitor, ainda que com certa ansiedade,
até o fim.
O confronto
com o “realismo mágico” latino-americano, cuja maior expressão está no
colombiano Gabriel García Marquez, também não favorece a opção formal de Raduan
Nassar. Em Cem Anos de Solidão, e outros textos, a narração é transparente, a
imaginação criadora não vem embuçada em fórmulas de penosa decifração.
E eu ainda me
pergunto: que referências temos, na grande literatura brasileira e universal,
que respaldem o estilo de Lavoura Arcaica?
Afora Joyce, na Irlanda, e Paulo Leminski, entre nós, casos polêmicos e
questionáveis, o que vamos encontrar em Machado de Assis, Eça de Queiroz, Graciliano
Ramos, Somerset Maugham, Joseph Conrad, Flaubert, Stendhal, Saint-Exupéry, Dostoiévski,
Tolstói, Umberto Eco, Kazantzakis e tantos outros notáveis? Certamente, nada
parecido com o feitio “nassariano”.
Sabe-se que
o nosso comentado, após publicar a novela Um Copo de Cólera, e alguns contos,
parou de escrever e recolheu-se, misantrópico, a uma fazenda. Entrevistado, declarou apenas que do que mais
gostava na vida era de dormir. Mas veio
ao Nordeste, e fez questão de conhecer Ariano Suassuna. Esteve inclusive em
Taperoá, visitando a criação de cabras que Ariano mantinha em sociedade com Manoelito
Dantas, seu parente. Mas, a não ser pelo desejo de voltar a uma vida no campo –
no caso de Ariano, nunca plenamente realizada – não parece haver afinidade
entre os dois. A prosa do nosso
conterrâneo, tão rica de imaginação, tão tipicamente nordestina e tão paraibana,
é límpida como água de fonte.
Portanto,
caro leitor, se, ao arriscar a leitura de Lavoura Arcaica, não se sentir
confortável, não se atormente. Como na fábula de Andersen, não precisa fingir
que viu a roupa invisível do rei.
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