E Stalin não tocou na poeta
Francisco Gil Messias
gmessias@reitoria.ufpb.br
Tem certas coisas na vida que a gente só pode tentar explicar – e entender – através de suposições. Coisas que fogem completamente ao “normal” e ao previsível. Coisas extraordinárias, portanto – literalmente. Esta que vou contar é uma delas, penso. Absolutamente inesperada e inexplicável à luz do corriqueiro e do senso comum. São esses mistérios que irritam, ao invés de encantar, os cientistas e os que pensam possuir resposta para tudo. São esses mistérios, como as curas milagrosas e as “coincidências” surpreendentes, por exemplo, que nos ultrapassam em nossa rasteira imanência, colocando-nos, nem que seja por ouvir dizer, em contato com a transcendência, à qual podemos atribuir caráter religioso ou não. São esses mistérios que nos tornam pequenos ante o universo e a complexidade da existência, e devem nos tornar humildes, humanamente humildes, sempre.
A maior poeta russa no século XX ninguém discute que foi Anna Akhmátova, falecida aos 76 anos, em 1966. Na realidade, ela nasceu em Odessa, atual Ucrânia, mas à época em que toda aquela área era abrangida pelo Império Russo. Da mesma forma, faleceu na então Leningrado, hoje São Petersburgo, cidade onde viveu a maior parte de sua vida e que muito amava. A geografia e o nome dos lugares mudam ao sabor das guerras e da política, bem sabemos nós que habitamos uma aldeia cuja denominação é permanentemente incerta, de tanto que alguns permanentemente insistem em alterá-la. A história – ou como ela é contada – também muda ao vento das circunstâncias, e o poderoso de hoje é o renegado de amanhã, assim como o antigo perseguido se transforma depois em herói, e por aí vai, lição constante para os tolos que se julgam eternos em sua pretensa importância. Assim foi com Stalin e com a poeta Akhmátova.
Ele, senhor de tudo e de todos na URSS criada para durar milênios e que só chegou a meras sete décadas; ela, uma aparentemente frágil mulher, que a qualquer sopro de vento mais forte sucumbiria fisicamente. Ele, um notório bruto, cruel assassino de milhões de compatriotas, déspota absoluto de seu reino oprimido, suposta ditadura “do” proletariado, mas, de fato, uma reles ditadura “sobre” o proletariado. Ele, com seus asseclas e suas múltiplas armas letais; ela, sozinha, com seu recurso e sua defesa únicos: a pena com que escreveu os versos de sua poesia imortal, maior, muito maior que qualquer império transitório, posto que pertence à humanidade, sem limitações de tempo e de espaço. Pois bem. O tirano, que tudo podia e a ninguém respeitava, que matou amigos e inimigos segundo o humor, não tocou num fio de cabelo da poeta que não o venerava, desafiadoramente, através da palavra poética corajosa, que falava em nome dos que não podiam fazê-lo. Como escreveu o holandês Jan Brokken, “nela ninguém encostava um dedo. Diante de sua elegância, de seus gestos refinados e do olhar imperturbável e distante, os poderosos recuavam”. Alguém imagina o truculento Stalin contendo a sua fúria homicida diante de uma simples mulher indefesa que tanto o incomodava? É difícil, não é mesmo? Entretanto, é um fato. E aí reside o mistério inicialmente citado, algo que ultrapassa a cotidiana compreensão dos mortais.
Mas o ditador encontrou o meio de atingir a poeta sem tocá-la fisicamente. E um meio não menos doloroso, diga-se, do que a mais terrível das torturas: feriu-a através de seus amados. “O primeiro marido foi fuzilado em 1921, o segundo morreu em um campo de trabalhos forçados, o filho Liev foi preso nos anos 1930 e, depois, nos anos 1940, passando ao todo catorze anos na prisão”, sem falar nos inúmeros amigos, escritores ou não, perseguidos de todas as maneiras. E com efeito ela sofreu muito com tudo isso, certamente mais do que se a morta ou a presa tivesse sido ela. Maldade sutil de Stalin, que em 1949 morreu de ciúmes da poeta ao sabê-la ovacionada num teatro de Leningrado por meia hora seguida, após ler partes de um poema. O ditador, como todos da sua espécie, só admitia aplausos para si mesmo.
E foi assim, com os seus poemas, que a poeta resistiu ao monstro. Não só enquanto ele viveu, mas por toda a posteridade dele e dela. Com ela, pode-se dizer que a poesia venceu a violência. Akhmátova vive e é celebrada cada vez mais, na Rússia e no mundo todo; já seu algoz foi jogado no lixo da história, destino final dos opressores.
Na também crudelíssima ditadura chilena de Pinochet, o general não respeitou o poeta Neruda. Não tivesse este sucumbido logo à sua fatal enfermidade, certamente teria sido preso, morto ou exilado, como aconteceu com milhares de compatriotas. Mas Neruda segue sendo Neruda através de seus poemas, que lhe deram o Nobel de Literatura de 1971, e o seu perseguidor segue sendo o que foi. De quem é a vitória derradeira?
Aqui no Brasil, os militares pós-1964 não tocaram num intelectual que lhes era declarado adversário, mesmo não sendo esquerdista: Alceu Amoroso Lima. Com sua incontestável “autoridade moral”, e a despeito de sua indormida defesa da democracia, Alceu atravessou incólume a ditadura que a tantos e tantas perseguiu sem pudor. Mais uma vez o mesmo mistério que protegeu Anna Akhmátova na atual São Petersburgo. Por quê?
Não sou dos que acreditam que a literatura vence o canhão, salvo a longo prazo, quando a história faz justiça, o que nem sempre acontece. Mas me curvo diante de um caso como o da poeta russa. Curvo-me, assim como silenciosamente se curvou Stalin, aquele que ao seu tempo tudo podia e que, com certeza, se considerava, para si e para os outros, “incurvável”…
Viva Anna Akhmátova!
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