Otto Lara Resende e o encontro com duas solidões: a de Juscelino e a de Lacerda
Francisco Gil Messias
gmessias@reitoria.ufpb.br
Otto Lara Resende, o excelente cronista, contista e romancista mineiro – e também saboroso causeur –, provavelmente encontrou-se com seu conterrâneo Juscelino Kubitscheck e com o fluminense Carlos Lacerda, duas das maiores lideranças políticas brasileiras da segunda metade do século XX, mais de uma vez. Mas só nos interessa aqui e agora o momento em que, por artes do destino (ou não), encontrou-os, cada um de per si e em circunstâncias e lugares distintos, na mais completa solidão.
Sei que associar solidão aos nomes de dois líderes de massa como Juscelino e Lacerda pode parecer um paradoxo, já que viveram, por boa parte da vida, cercados de gente e de admiradores, os áulicos, claro, incluídos, por inevitáveis. Um, mais ao centro, verdadeiro liberal, no bom sentido da palavra; outro, à direita assumida, talvez até fascista, decidam os teóricos, finos em rotular tudo. Mas, como se sabe, ambos experimentaram também a derrota e o ostracismo, e foi aí que a tal da solidão neles fez morada, como costuma acontecer com os que se veem privados de prestígio e poder. Ou seja, com aqueles que nada mais têm a oferecer, em termos de vantagem, a ninguém. Esse drama é universal e atemporal, nada possui de novidade, e, no entanto, sempre nos surpreende. Assim como a morte, sabemos.
O encontro com Lacerda tem ano certo: 1968, minutos após a edição do Ato Institucional nº 5, que explicitou, de uma vez por todas, o autoritarismo do governo. Já o com Juscelino, sem data determinada por Otto, deu-se no período entre 1966 e 1970, quando ele exerceu o cargo de Adido Cultural na embaixada do Brasil em Lisboa. Não sei, assim, qual dos dois aconteceu primeiro, razão pela qual começo pelo de Lacerda, sem que isto signifique, esclareço, que lhe concedo qualquer primazia devocional, pois esta pertence a JK, também esclareço. Em Lacerda, é de se admirar o orador e o escritor, principalmente o de A casa de meu avô, ponto alto de nossas letras. Em política, creio que foi um equivocado contumaz, ressalvando sua operosa administração como governador da então Guanabara.
Pois bem. No dia 13 de dezembro de 1968, no Rio de Janeiro, dia de chuva fininha, pouco alvissareira, nosso Otto vinha num táxi, cujo pneu furou. Debaixo d’água, correu para se proteger à porta de um edifício no Flamengo. E foi quando percebeu que ali morava Carlos Lacerda, um dos líderes civis do golpe de 1964. Sempre jornalista, Otto resolveu aproveitar o ensejo e ir ver o príncipe deserdado; quem sabe, até ouvi-lo naquele e sobre aquele instante nacional sombrio. Passo agora então a palavra ao mineiro de São João del Rei, por muitos considerado como “o mais mineiro dos mineiros”, o que representa um título e tanto: “Subi e encontrei-o só, no escritório, enterrado na cadeira de balanço. (…) Em hora tão grave, tão decisiva, impressionava-me sua solidão; eu olhava aflito o telefone; ninguém telefonava.”. Vejam só. O homem que praticamente na véspera era considerado um dos vitoriosos do golpe, apontado como candidato fortíssimo a presidente da República, com ou sem eleição, assediado, cortejado, respeitado, bajulado e temido por multidões de seguidores e de oportunistas, de uma hora para outra vê-se sozinho, quase abandonado, imerecedor de um simples telefonema solidário, num momento de tanta necessidade de afago humano, já que de seu cão certamente tinha o que os homens lhe negavam.
Pulemos, pois, para Lisboa. Otto estava lá, como ele escreveu, numa “tarde vadia”. Tomara conhecimento de que Juscelino se encontrava hospedado no Hotel Ritz. Resolveu ir ter com ele, assumindo os riscos inerentes à empreitada, pois JK era um perseguido pelos que então governavam o Brasil. Anunciou-se e subiu, conforme suas palavras: “Telefonei de baixo, da portaria, e encontrei-o só, depois de um almoço no Grêmio Literário da rua Ivens. Raramente vi um ser humano tão sozinho.”. Mas Juscelino era forte, continua Otto: “Sempre animado e otimista, segurou-me para um papo que não acabava mais. Entrementes, aguardava uma chamada do Palácio São Bento, para ir ver Salazar.”. Interessante é que, a despeito das diferenças, JK tinha uma estima pessoal pelo ditador português. Considerava-o seu amigo e amigo do Brasil. O solitário Juscelino convidou Otto para acompanhá-lo nessa inusitada visita a Salazar, mas dessa vez o jornalista não falou mais alto e ele declinou. Ter-se-á arrependido?
É muito provável que o escritor tenha encontrado outras solidões em seu rico caminho de vivências e de conhecimentos. Neste mundo, solitário é o que não falta. Principalmente os órfãos do poder, esse infiel contumaz, que se entrega a quem quer, quando quer e pelo tempo que quer. Mas esses dois brasileiros despossuídos do que mais queriam são emblemáticos.
Juscelino e Lacerda, tão diferentes entre si na personalidade. Um, naturalmente expansivo, conciliador e simpático; o outro, mais sorumbático, explosivo, brilhante, arredio e reservado. Cada qual, como muitos, com um universo dentro de si. Com seus afetos e idiossincrasias. Seus mistérios profundos, seus abismos. Encontraram-se na cela da solidão, mesmo que separados. A cela dos que se retiraram do mundo ou foram postos fora dele. A cela que todos nós, maiores e menores, célebres ou anônimos, de alguma forma e em alguma medida, um dia (que seja) frequentamos - ou haveremos de frequentar.
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