Por: | 04/09/2024
LETRA LÚDICA
Hildeberto Barbosa Filho
Tributo a Gemy Cândido
Gemy Cândido (1943-2024) deixou alguns livros inéditos. Segunda-feira passada, na Fundação Casa de
José Américo, um desses livros foi lançado. Riachão de Banabuié (João Pessoa: Edição de Martinho Sampaio, 2024), espécie de biografia e história da cidade de Esperança, berço natal do autor.
Gemy Cândido, no meu entender, é uma das personalidades intelectuais da Paraíba que muito serviço prestou no campo da cultura e das letras. Sobretudo, das letras literárias. As pesquisas que resultaram neste amplo e detalhado perfil da aldeia de Silvino Olavo vêm, em certo sentido, prolongar o alcance do biógrafo consumado, cuja prova indiscutível se perfaz com o volume Clóvis dos Santos Lima: um homem predestinado, de 2007.
A biografia que cultiva, a tomarmos como exemplo estas duas publicações, associa as figuras do historiador e do crítico literário, caracterizados pelo rigor do pensamento, pela severidade na apreciação dos fatos, das pessoas e pelo tom, não raro, duro, direto e sarcástico com que reveste os recursos estilísticos. A sua palavra, como a de um José Veríssimo, por exemplo, é sempre adversativa, pois, em meio às possíveis virtualidades do texto ou do autor que analisa, traz à tona, quase como um procedimento incontornável, este ou aquele senão que sinaliza para certas fragilidades que lhe são inerentes, formalizando, assim, sua postura crítica e exegética.
Quando trata do escritor, na biografia de Clóvis dos Santos Lima, releva o valor e o empreendimento de suas pesquisas e de seus achados, porém, chama a atenção do leitor para o fato de que se trata de autor “pouco original no tocante à criatividade” (P. 43). Por outro lado, assegura, mais adiante que “se não é possível distinguir, nele, uma filosofia, sequer mesmo uma teoria do conhecimento e∕ou uma estética literária, os seus trabalhos se impõem pelo que insinuava, ou pelo que perpassa do texto” (P. 52).
É este o estilo de Gemy Cândido. Ele, como poucos, ilustra a máxima de Buffon, naquela acepção de que o “estilo é o próprio homem”. E este estilo, colado sempre a uma percepção aguda e cáustica, se estende pelos diversos setores que atraíram seus interesses de homem estudioso e dedicado ao conhecimento. E aqui, especialmente, aos fenômenos que concernem à vida histórica e literária da Paraíba.
Nesta área em particular, Gemy Cândido, quer me parecer, atua em duas frentes de trabalho. Primeiro, o pensador, o crítico, o metacrítico, o intérprete, de que servem de prova os ensaios coligidos na Fortuna crítica de Augusto dos Anjos (1981); segundo, o organizador dos elementos culturais naturalmente dispersos na dinâmica do processo histórico, conforme demonstrado em História crítica da literatura paraibana (1983).
Diga-se, no entanto, que tais atuações, na verdade, se fundem na perspectiva de suas reflexões filosóficas, sociológicas, históricas e estéticas, a sedimentar, portanto, a unidade orgânica do seu pensamento crítico, tantas vezes demonstrado nos múltiplos ensaios monográficos que escreveu nas páginas do Correio das Artes, sob a editoria de Jurandy Moura, e em outros órgãos de divulgação cultural.
Gemy Cândido filia-se a uma vertente de polígrafos locais que constitui um acervo de fontes imprescindíveis ao estudo das coisas da terra. Sua história, sua arte, sua literatura. Um Eudes Barros, um João Lélis de Luna Freire, um Manoel Tavares Cavalcanti, um Ascendino Leite, um Eduardo Martins, um José Rafael de Menezes, um Horácio de Almeida, um José Octavio de Arruda Melo, entre outros, como que pavimentaram o terreno cultural sobre o qual Gemy Cândido se debruçou com argúcia e intensidade.
A efígie do crítico literário como um “solitário sobre penhascos batidos de rajadas sibilantes e da arrebentação das ondas em volta”, na singular alegoria de Fidelino de Figueiredo, casa-se perfeitamente com a sua irrequieta individualidade dentro do contexto geral da província. Fez poucos amigos, fez muitos desafetos. Não obstante, o homem inteligente e sensível aos vocativos do espírito, assim como também as instituições culturais do estado, não podem ficar indiferentes à sólida contribuição intelectual que deixou.
Dos seus inéditos, por exemplo, gostaria de ver publicados principalmente: Fundamentos históricos e sociais da literatura paraibana; O código da linguagem estética; Escorço bibliográfico da poesia paraibana, e Dicionário bibliográfico da literatura paraibana. Quanto teríamos a ganhar e a aprender, sobremaneira, as novas gerações estudiosas, com a consulta e a leitura de obras como estas!