Archidy Picado Filho
Archidy Picado Filho
Archidy Picado Filho

O Fascismo e o Nazismo: A Escalada do Totalitarismo e a Persistência da Intolerância

Por: | 08/09/2024

“O fascismo foi um viés político em prol do poder, da ordem, do Estado e da guerra, com um sistema de valores que pôs o grupo acima do indivíduo, a autoridade acima da liberdade, a coesão acima da diversidade, a vingança acima da reconciliação, a retribuição acima da compaixão, a supremacia dos fortes acima da defesa dos fracos. O fascismo justificou a revogação dos direitos dos dissidentes, divergentes, desajustados e subversivos. Se chegou a possuir algo de intelectual, não foi mais que um amontoado de ideias forçadas à coerência, como sucata esmagada num compressor de um ferro-velho: uma falsificação ideológica, construída na marra de várias partes vagamente interligadas de tradições corporativas, autoritárias e totalitárias. Se os fascistas foram ou não uma cisão do socialismo é uma questão que ainda provoca debates passionais. É certo que mobilizaram proletários e pequenos-burgueses ao defender políticas que poderiam ser resumidas, grosso modo, como ‘socialismo sem expropriação’. E seu credo poderia ser classificado como uma doutrina que se desenvolveu de forma independente, ou como um estado mental em busca de uma ideologia, ou como um simples nome bem bolado para um oportunismo desvairado. Na Roma antiga, fascis era um feixe de varas em torno de um machado que os lictores portavam perante os magistrados como símbolo de seu poder de flagelar e decapitar pessoas. Benito Mussolini adotou esse ícone banhado em sangue pela aplicação da lei como ‘logotipo’ de seu partido, a fim de expressar a essência do fascismo: o bem-estar geral propiciado pela vara e pelas cutiladas do machado. A cor das camisas de seus capangas truculentos pode mudar ou esvaecer, as formas de seus ritos e o ângulo de suas saudações podem ser alterados ou abandonados, mas o fascismo se reconhece por efeitos que se sente: o suor de medo dele, as marcas da sola de suas botas. A mágica cadência dos balbucios fascistas conseguia seduzir até aqueles que o odiavam ou temiam. ‘O fascismo não é uma nova ordem’, disse Aneurin Bevan, líder socialista britânico famoso por se expressar com obscuridade gnômica, como Sam Goldwyn ou Yogi Berra, mas sem humor: ‘É o futuro recusando-se a nascer’.

“O nazismo compartilhava todas essas características, mas era algo mais que fascismo. Se os fascistas eram cotidianamente anticlericais, os nazistas imitavam ativamente a religião. Substituíram a providência pela história. Para os nazistas, a história era uma força impessoal, poderosa e impetuosa, como um ‘curso’ que ninguém era capaz de conter. Vidas humanas eram meros joguetes, como cobras para um mangusto ou camundongos para um gato. A história exigia sacrifícios humanos, como uma deusa faminta que se fortalece devorando raças profanas. A estrutura e a linguagem do milenarismo caíam bem nos nazistas, e a história, quando enfim realizada, seria um ‘Reich de mil anos’. Cerimoniais bem orquestrados, relicários e santuários, ícones e santos, procissões e êxtases, hinos e cânticos completavam o culto e a liturgia dessa quase religião. Como todo dogma irracional, o nazismo exigia o consentimento irrefletido de seus seguidores e a submissão à infalibilidade do Führer. Os nazistas fantasiavam a substituição do cristianismo e a restauração do pragmatismo antigo do Volk. Alguns transformaram o Heimatschutz – ‘a busca da pátria-mãe’ – em uma trilha mística que passava por círculos de pedra e chegava ao Castelo de Wewelsburg, onde, segundo acreditava Heinrich Himmler, as linhas de ley convergiam no centro da Alemanha e do mundo.

“Ideologias de ordem, propensas a sacrificar tanto o humanitarismo como a piedade, resumiram as contradições da modernidade: o progresso da tecnologia e a regressão ou, no mínimo, a estagnação da moral. Às vezes, em locais onde intelectuais burgueses como eu se reúnem em jantares ou conferências acadêmicas, fico surpreso ao ouvir expressões de confiança no progresso moral: as flutuações na violência relatada em países desenvolvidos, por exemplo, costumam ser confundidas com evidências de que os esforços dos educadores estão rendendo dividendos. Na realidade, porém, mostram apenas que a violência foi sorvida por buracos negros que a impedem de aparecer nas estatísticas – a coerção estatal, por exemplo, ou a ‘terminação’ de idosos ou não nascidos. Ou então os bien-pensants rejubilam-se com a tolerância com que apropriadamente aceitamos uma gama cada vez maior de comportamentos tradicionalmente proscritos – em especial nas questões de gosto e vestuário. Mas o somatório de intolerâncias, e a raiva que elas alimentam, provavelmente não diminuiu. Aqueles homenzinhos ruidosos podem não ter conseguido o que almejavam na Segunda Guerra Mundial, mas o fascismo das soluções finais não desapareceu por inteiro. À medida que se torna cada vez mais difícil lidar como caos e as complexidades da sociedade, e que o ritmo das mudanças vai ficando mais e mais ameaçador, os eleitores começam a se voltar para oposições autoritárias: policiamento mais severo, prisões mais rigorosas, tortura para terroristas, muros e expulsões e exclusões, e nações voluntariamente abandonando organismos internacionais. De certa forma, o autoritarismo tornou-se uma ideologia capaz de transcender as rivalidades tradicionais. Enquanto escrevo, Vladimir Putin, o ex-chefe da KGB, parece ter se tornado o ídolo dos republicanos interioranos dos Estados Unidos e o queridinho de Donald Trump. Confusos com o caos e infantilizados pela ignorância, os refugiados da complexidade buscam consolo no fanatismo e no dogma. O totalitarismo pode não ter esgotado sua atratividade.” 

Felipe Fernández-Armesto em UMA HISTÓRIA DA IMAGINAÇÃO – COMO E POR QUE PENSAMOS O QUE PENSAMOS, págs. 420, 421 e 422


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