Entre as múltiplas vidas que me é dado viver, destaco três. Uma é a vidinha de sempre, a vida besta de que fala Drummond, a vida que divido com as outras pessoas no dia a dia. Afazeres, obrigações, visita a médicos, farmácia, feira, faxina, lazer, tudo submetido à lógica opaca da cronologia. A outra me conduz ao reino das palavras, com seus sortilégios, seus imperativos, sua inusitada ecologia. Devo dizer que essa vida se tece muito mais no plano do
imaginário do que nos ossos da realidade. Devo dizer também que essa vida se entrelaça com os nutrientes da liberdade, mesmo que intangível e solitária. É uma vida que deixa a outra de lado ou que a outra se superpõe, com suas camadas venturosas de descoberta e revelação. A terceira vida se impõe quando as duas se chocam, se fundem, se misturam, se complementam na paisagem inaugural de um poema. O ordinário e o extraordinário, aqui, passam um por dentro do outro e já não são, em si, coisas isoladas.
