Archidy Picado Filho
Archidy Picado Filho
Archidy Picado Filho

CITAÇÃO

Por: | 17/09/2024

 

“O que veio a ser chamado de pós-modernismo foi mais, porém, do que uma ‘reviravolta linguística’. O mal-estar com a linguagem somou-se à incerteza científica e levou muitos a desconfiarem da possibilidade – e até da realidade – do conhecimento.  Eventos angustiantes e novas oportunidades provocaram certa repulsa ao modernismo: guerra, genocídio, satanilismo, Hiroshima, as utopias molambentas criadas pelos movimentos arquitetônicos modernos, a lugubridade das sociedades superplanejadas que os europeus habitaram nos anos do pós-guerra. Os alienados quiseram retomar a cultura: a tecnologia alucinante do entretenimento gerado eletronicamente ajudou-os nessa tarefa.

“Em parte, diante desse contexto, o pós modernismo parece ser um efeito geracional. Os baby boomers podiam repudiar uma geração fracassada e incorporar sensibilidades próprias de uma era pós-colonial, multicultural e pluralista. As contiguidades e fragilidades da vida em um mundo superpovoado que não é mais que um vilarejo global incentivaram ou exigiram perspectivas variadas, e vizinhos passaram a experimentar ou adotar os pontos de vista uns dos outros. Hierarquias de valor tinham de ser evitadas, não porque fossem falsas, mas porque são conflitantes. A sensibilidade pós-moderna reage bem ao esquivo, ao incerto, ao ausente, ao indefinido, ao fugidio, ao silencioso, ao inexprimível, ao insignificativo, ao inclassificável, ao inquantificável, ao intuitivo, ao irônico, ao inexplícito, ao aleatório, ao transmutativo ou transgressivo, ao incoerente, ao ambíguo, ao caótico, ao plural, ao prismático – a tudo que as sensibilidades modernas rígidas e severas não conseguem abraçar. O pós-modernismo, por essa perspectiva, surgiu de acordo com suas próprias decisões sobre outras formas ‘hegemônicas’ de pensamento: foi a fórmula construída socialmente arquitetada culturalmente. Imposta por nosso próprio contexto histórico. Em linhas famosas, Charles Baudelaire definiu o moderno como ‘o transitório, o efêmero, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável’. É tentador adaptar essa frase e dizer que o pós-modernismo é a metade transitória, efêmera e contingente da modernidade, cuja outra metade é o eterno e o imutável.

“Eventos específicos da década de 1960 ajudaram o pós modernismo a se solidificar. Estudantes se deram conta de que o quadro científico predominante do cosmo era associado por contradições e que, por exemplo, a teoria da relatividade e a teoria quântica – os efeitos intelectuais mais valorizados de nosso século – não podiam ambas estar corretas. A obra de Jane Jacobs expressou a desilusão com a cisão moderna da utopia, corporificada na arquitetura e no planejamento urbano. Thomas Kuhn e a teoria do caos completaram a contrarrevolução científica do século. A imagem ordenada do universo herdada do passado foi substituída pela imagem com que convivemos hoje: caótica, contraditória, repleta de eventos não observáveis, partículas não rastreáveis, causas não determináveis e efeitos imprevisíveis. A contribuição da Igreja católica – a maior e mais influente comunhão do mundo – não costuma ser reconhecida. No Concílio Vaticano II, contudo, o outrora mais confiável repositório humano de confiança baixou a guarda: a Igreja autorizou o pluralismo litúrgico, mostrou deferência inédita e inesperada à multiplicidade de crenças e comprometeu as estruturas de autoridade aproximando os bispos do papa e os laicos do sacerdócio.

“O resultado dessa combinação de tradições e circunstâncias foi uma breve era pós-moderna, que convulsionou e tingiu os mundos da academia e das artes – na medida em que a civilização pertence a intelectuais e artistas – mereceu ser incluída entre os períodos em que dividimos nossa história. No entanto, se houve de fato uma era pós-moderna, ela parece ter sido coerentemente evanescente.  Nos anos 1990 e depois, o mundo passou rapidamente do pós-modernismo ao ‘pós-mortemismo’. Ihab Hassan, o crítico literário que os pós-modernistas saudaram como um guru, retraiu-se cheio de tédio e denunciou seus admiradores por terem ‘dobrado a esquina errada’.”

Felipe Fernández-Armesto em UMA HISTÓRIA DA IMAGINAÇÃO – COMO E POR QUE PENSAMOS O QUE PENSAMOS (editora Zahar, Rio de Janeiro, 2023), págs. 436 e 437


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