Primeira Parte: a peleja
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Olhou para o planeta natal da pretensa humanidade e da desumanidade, que reinara durante “os últimos dias” de Terra.
Começava a brilhar seus azuis, parte iluminado pela estrela mais próxima dele, o Sol, situada pouco acima do horizonte lunar que, luzindo sempre à noite, na ausência de outras estrelas no céu de Lua, projetava sombras de montanhas no solo acinzentado.
“Um formigueiro”, era o que pensava do complexo habitacional onde morava, embora nunca tivesse visto um formigueiro senão nos arquivos da História da Terra, construído em Lua sob gigantesco domo por empreendimentos conjuntos da extinta NASA com a também extinta Agência Espacial da América do Sul, onde tinha sido o Brasil – país responsável pelo abrigo dos povos de outras regiões do planeta, de outros países que não sobreviveram as violentas mudanças no ecossistema de Terra; construído em cooperações com a Agência Espacial Europeia e outras antigas empresas aeroespaciais chinesas, japonesas, indianas e africanas, estando Terra 2 instalada no centro do Mar da Tranquilidade .
Quase dezoito anos terrestres haviam passado desde que nascera numa noite de Terra-cheia, sendo chamada “Luna” entre trazidas ao usufruto da Vida na nova linhagem de lunáticas nascidas em Terra 2, onde três centenas das últimas famílias matriarcais mais influentes do planeta tinham se refugiado, depois do que criam ter sido “a última” devastação terrestre; décadas depois da conquista geopolítica do planeta por sistemáticas reações das mulheres que, com a colaboração de “homens de boa vontade”, deflagraram o que, nos arquivos da História da Terra, se conhecia como “A Última Guerra”.
Resultado de imprudências, ambições e de milenares mudanças previstas na dinâmica natural do planeta, devagar Terra novamente afogara o que era seco sob imensos lagos e rios, enquanto, nas profundezas dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico, haviam surgido desafogados desertos montanhosos que, agora, abrigavam o que Mamas administradoras de Terra 2 consideravam “o Inferno” , uma expressão forjada há milênios mas que ainda representava um lugar cheio de fogos e gazes venenosos, agora habitado por híbridos herdeiros dos males desenvolvidos pela perversidade dos desumanos; principalmente em seus “últimos dias”, crendo muitas Mamas haverem ressurgido no planeta semelhantes aos antigos macacos, embora sempre sofrendo por escassez d’água e outros alimentos.
Nascida em Lua, então, Luna estava entre descendentes dos sobreviventes do conjunto de hecatombes que, não tendo feito Terra explodir, a tornara inabitável, embora pouco mais de uma década tivesse passado desde que o planeta começara a mostrar ter restaurada sua atmosfera, estando, como criam certas Mamas, propício a ser visitado, tendo renascido já algo do que fora a Amazônia nuns poucos milhares de seus hectares, antes desertificados pela ambição perversa e pelo tempo.
Mama-Antyra, astrofísica-zoobotânica-engenheira-planetária, monitora responsável pelo reflorestamento natural do planeta, garantia que, graças à eficiência do sistema de polinização – que transportara 100 bilhões de abelhas remanescentes em apoio ao reflorescimento de Terra, entre outras providências para maior agilização da ressurreição do planeta – as abelhas ajudariam a trazer de volta todas as suas belas paisagens florestais em mais ou menos mil anos terrestres. Mesmo que o problema maior não fosse, como nunca tinha sido, dar apoio ao desenvolvimento do ecossistema, interferir em seu curso natural, mas garantir que próximas gerações de pré-humanas, em sentimentos, pensamentos e ações, finalmente apresentassem a humanidade.
Em épocas apocalípticas, graças à confusão entre o conceito de “humanidade” e “desumanidade”, animais racionais, irracionais e insetos, mais especificamente as abelhas, tinham sido as formas da Vida mais importantes do planeta, sendo abelhas mais financeiramente valiosas do que um pré-humano, cuja mão de obra fora dispensada às atuações das máquinas, de robôs domésticos e empresariais.
Diante disso, o direito ao usufruto da Vida fora dado tão somente às mulheres que, com mesmo potencial de inteligência e criatividade, criam-se motivadas basicamente pelo afeto. Finalmente reconhecidas autênticas humanas, em Lua ou em Terra. Assim seria a nova geração que as fêmeas poderia finalmente apresentar à definitiva Humanidade sobre o planeta.
- E então? Posso ir à Terra na excursão que a Universal organizou ao planeta, Mama? – perguntou Luna, como tantas vezes perguntara, chegando flutuando no laboratório de sua Mama enquanto olhava a paisagem lunar sem graça através da grossa parede transparente de diamante que a separava dela; com Terra pairando pouco acima do horizonte lunar, já quase toda azul em sua banda luminosa; flutuando no meio do anel de lixo formado por milhares de satélites desativados, velhas estações espaciais e cidades orbitais ainda em órbita, a maioria propriedade da extinta Homens de Ferro S.A., empreiteira de reaproveitamentos de todo ferro-velho do planeta; produtora dos robôs modelo “Adão” que haviam construído os primeiros fundamentos de Terra 2 em Lua, tendo sido os primeiros a habitá-la.
Deles havia ainda muitos modelos, sendo mais desejados os modelos indianos e brasileiros, preferidos por muitas Mamas durante suas relaxantes sessões de sexo.
- Afinal, completo dezoito anos terrestres daqui há dez dias terrestres e você prometeu me deixar ir desde o ano terrestre passado – disse Luna enfática e irritada, lembrando sua Mama que andava ansiosa por viajar à Terra, estando cada dia mais decepcionada e triste com suas recusas à realização daquele seu único desejo, imaginando-se em Terra diante do que mais queria ver sem que precisasse recorrer às projeções das salas 4D2: borboletas coloridas, para lunáticas eternistas, inequívocos sinais da perene ressurreição da Vida.
Porque Luna era fascinada por borboletas, “flores voadoras”, como as viu “Bambi” dizer delas, personagem de um desenho animado produzido por um tal “Walt Disney”, como apreendera entre os arquivos da História da Terra. “Bambi, recém-nascido tornado órfão; assombrado num mundo que lhe era completamente desconhecido”, pensou Luna, imaginando o que também sentiria em Terra se algum dia chegasse lá.
Sua Mama olhara por cima do ombro, de meio-cenho franzido dirigido ao planeta, ali, brilhando, mas ainda meio opaco no negro céu lunar, dando pausa na atenção dedicada ao microscópio de fótons , que usava à descoberta da ainda misteriosa estrutura fundamental de tudo presente no vazio universal.
– Você prometeu que me daria o passeio de presente de aniversário – Luna insistiu.
- Andei pensando – disse a Mama dela, voltando a dar atenção ao microscópio.
- Você pensa demais, Mama. E, quando pensa, sobra pra mim – disse Luna muito chateada. – Vivo em Lua desde que nasci há quase dezoito anos terrestres e ...
- E dê graças à Vida por ter nascido aqui, no céu, ao invés de em Terra, no inferno – observou Mama. – Você vive no mundo da Terra, Luna. A imagina como se fosse o Éden, o “Paraíso”, mas não sabe como foi viver lá durante os primeiros e, menos ainda, os últimos dias. Principalmente nas últimas noites do planeta, todas infernais. Também tive sorte de ter nascido aqui, embora não tão... melhorada quanto você. Das primeiras lunáticas, ainda tenho certas heranças genéticas que me fazem ser quem sou, da forma que sou. Goste você ou não, goste eu ou não, e então, como toda antiga boa mãe terrestre fez, devo fazer, pois penso em sua segurança, em seu bem-estar.
- Mas...
- Apesar das garantias da Universal, Terra ainda não é um lugar seguro. Pra ninguém, devo dizer, antes que você venha com essa de já ter idade suficiente pra saber se cuidar. Qualquer uma de nós que deseja ir lá é uma suicida. No mínimo, uma masoquista. E mesmo que toda Terra estivesse reflorestada, estivesse pronta pra nos receber, não duvido que, mesmo não havendo mais homens entre nós, quem de nós for lá cuidará para torná-la logo outra vez inabitável. Porque desconfio que o amor, algo sobre que muito se falava e pouco se praticava por lá, ou mesmo somente a afetividade não é própria a toda mulher, como a maioria de nós crê. Como foi em Terra, será novamente. Primeiro em pequenas zonas: uma baguncinha aqui, outra ali, sem que tenhamos outra vez prestado atenção aos avisos da História e teremos que voltar correndo pra Lua, de onde terá sido melhor nunca ter saído. E é o que pretendo fazer, além de impedir que você não faça. (DE UM LIVRO AINDA EM DESENVOLVIMENTO)
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