Hildeberto Barbosa
Hildeberto Barbosa
Hildeberto Barbosa

Servo da palavra

Por: | 17/09/2024

Letra Lúdica
Hildeberto Barbosa Filho
Servo da palavra

Nos idos da juventude, entre os anos 70 e 80 do século passado, na Faculdade de Direito, localizada ao lado das escadarias históricas do Beco Malagrida, ele era a voz mais eloquente, já revelando, a seus pares, os sinais de quem seria o grande tribuno de nossa geração.

Quando da fundação do Centro de Oratória Alcides Carneiro, fez luminoso discurso, dividindo a cena sagrada da palavra com o jovem Eitel Santiago, também dado ao imperativo dos voos vocabulares, em meio ao inocente e jubiloso idealismo de futuros profissionais do direito.

Salvo engano, vivíamos o destino da última fornada de bacharéis que queriam mais que o direito e a justiça, pois tocados, quase todos, pelo bafejo encantatório dos signos estéticos e literários. Àquela época não se falava em operadores do direito, e a ciência jurídica, por sua vez, refletia, nas sábias lições de seus mestres modelares, os lampejos incontornáveis de uma longa tradição humanística.

Evoco, na altura de seus 70 anos, completados ontem, dia 14 de setembro, a figura carismática de Cleanto Gomes Pereira. Cleanto, o amigo generoso, a criatura aglutinadora, o apaixonado do direito, o amante da literatura, o leitor de Augusto dos Anjos, o admirador de Mozart, o sorriso largo, a voz poderosa, o coração maior que o mundo, como diria Drummond.

Era mais afinado com o direito civil, admirava Pontes de Miranda e sempre me falava, entusiasmado, do monumental Tratado das obrigações, do genial alagoano. A propósito, um traço peculiar e dominante de sua personalidade reside exatamente nisto: a capacidade de admirar. Não foi por acaso, portanto, que intitulou seu primeiro livro, publicado em 2015, de Minhas admirações.

E quem são as admirações de Cleanto?

Espírito refinado, cultura polivalente, servo da palavra, Cleanto mescla, nas páginas de sua obra, maiores e menores, sempre atento às características seminais de cada personalidade.

Ao lado de Dostoiévski, Oscar Wilde, Bernard Shaw, Jean Paul Sartre, Euclides da Cunha, Augusto dos Anjos, Gilberto Freyre e Pedro Américo, entre notáveis de intensa ressonância na cultura ocidental, coloca os da província, a exemplo, entre tantos, de Francisco Gil Messias, Walter Galvão, Tarcísio Burity, Yanko Cyrillo, Silvio Porto, Zé Trovão, Celso Mariz, Silvino Olavo, Alcides Carneiro e Raul Machado.

Até mesmo este articulista não escapa ao gesto largo e solidário que sedimenta a força admirativa do autor. Em texto breve, porém, profundamente empático e vazado em estilo fluente e elegante, em idioma literário onde rigor e correção se juntam na composição da frase, traça minha fisionomia intelectual na singularidade de um contexto a que não faltaram as tensões entre a verdade do direito e a paixão da literatura.

Sinto, quanto àquilo que me concerne, certo exagero nas suas palavras, certo calor irreal, justificável tão somente pelo fiel sentimento de amizade que sempre nos uniu. Cleanto me põe numa altitude que não é a minha e que só compreendo, quando interpreto o destino dos passos que sempre o conduziram na vida, isto é, o temperamento afetivo, a retidão de caráter e a inadiável generosidade.

Ao lançamento deste livro afetuoso e efusivo todos os seus amigos compareceram. A tiragem inicial, de 300 exemplares, esgotou-se, antes mesmo da solenidade terminar. Coisas assim já dizem tudo.

Na fala de apresentação da obra e do autor, que a mim me coube, procurei registrar a magia daquele momento especial. Pensei em Osias Gomes, avô de Cleanto, avô e modelo, e tive a nítida convicção de que o velho e sábio polígrafo também estava ali, feliz, de dentro do mundo invisível, sorrindo, agradecido aos deuses que abençoaram certamente aquela noite de festa, em cujo cenário seu neto querido e talentoso era o grande protagonista.

(Publicado ontem, 15/09/24, em A União)


FONTE: A União - via Facebook - Acesse

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