Hildeberto Barbosa
Hildeberto Barbosa
Hildeberto Barbosa

Vanildo, Augusto e eu

Por: | 04/10/2024

Letra Lúdica
Hildeberto Barbosa Filho
Vanildo, Augusto e eu

Solitário, vestido com simplicidade, carregando um exemplar do Eu, dirigia-se a uma das salas da Biblioteca Central da UFPB, para fazer uma palestra sobre Augusto dos Anjos. Eram os idos de 80 do século passado. Foi a primeira vez em que o vi pessoalmente.

Já o conhecia de nome e de certa fama que irradiava nos meios intelectuais e acadêmicos. Professor de filosofia, especialmente filosofia do sagrado; poeta, ensaísta, tradutor, figura decisiva da chamada Geração 59, grupo e movimento que procurou dar os primeiros passos de renovação estética na tradição literária da Paraíba, particularmente no terreno poético.

Estou falando de Vanildo Brito, de saudosa memória.

Na sala da Biblioteca estávamos eu e mais cinco ou seis pessoas para ouvi-lo. Sem ninguém o apresentar, sentou-se à nossa frente e começou a dissertar, seguro e fluentemente, acerca da poesia do poeta do Pau d’ Arco.

Não demonstrou nenhum desconforto ou constrangimento pela pouca audiência. Tive a impressão de que, tivesse apenas um ouvinte naquela sala fria da Biblioteca, falaria com o mesmo cuidado, com a mesma seriedade, com o mesmo desprendimento com que se houve naquela ocasião. Ocasião rara, pelo menos para mim, já àquela altura, dado ao sabor das admirações intelectuais.

Contextualizou bem a lírica de Augusto dos Anjos dentro dos embates científicos e filosóficos do século XIX, sobretudo, esclarecendo seus vínculos incontornáveis com as ideias de Haeckel, Spencer, Darwin e, em certo ponto, Schopenhauer e coisas do budismo. Não esqueceu as ressonâncias dos valores sapientes que a Escola de Recife, de certa maneira, configurou na visão de mundo do poeta, atormentado pela agônica dialética entre os filtros da razão científica e os apelos da sensibilidade estética e da intuição criadora.

Também se ateve, num viés mais literário e artístico, às possíveis inter-relações ou confluências da poética de Augusto com a poética de Baudelaire, Cesário Verde e um que outro rastro estilístico de tonalidade euclidiana.

Destacou, na fundamentação de seus argumentos, passagens singulares dos grandes poemas do bardo paraibano. Vieram, à tona, em sua voz nítida e cadenciada, versos de “Monólogo de uma sombra”, “As cismas do destino”, “Os doentes”, “Gemidos de arte”, “Poema negro”, “Queixas noturnas” e um que outro terceto ou quarteto de seus sonetos inimitáveis.

Para mim, suas palavras me ajudaram a compreender melhor certos aspectos, certos tons e certas imagens incomuns que aparecem nas camadas expressivas do texto poético do autor. Vanildo Brito era um poeta, e lia o poeta maior como poeta, mais do que como um crítico, embora não lhe faltasse o equipamento teórico a subsidiar a aproximação analítica, exegética e judicativa inerente a este tipo de abordagem.

Terminada a exposição, que durou mais ou menos uma hora, pôs-se à disposição dos ouvintes, interpelando-os. Ninguém se pronunciou. Eu mesmo me cerquei do silêncio daquele que se dava por satisfeito. O poeta agradeceu e se despediu, fazendo de volta, solitário, o seu caminho, com o velho exemplar do Eu, salvo engano, daqueles editados pela Livraria São José, debaixo do braço.

Acompanhei-o à distância, admirando sua simplicidade e sua sabedoria, certo de que vivera um momento especial de aprendizagem e reflexão. E disse a mim mesmo: Lá vai o grande Vanildo Brito, uma das inteligências mais afortunadas da cidade! Felizes daqueles que o tem como mestre e como amigo.

Nem imaginava, naquele instante de perplexidade e pequenina epifania, que viria a privar de sua amizade pessoal, num futuro próximo, e que me transformaria, também, num de seus leitores mais entusiastas, assinando, inclusive, diversos ensaios críticos sobre a sua obra poética, que depois reuni num único volume, a que intitulei, valendo-me de um de seus belos versos O caos e a neblina: Vanildo Brito e a Geração 59, publicado em 2011.


FONTE: Facebook - Acesse

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