Por: | 30/10/2024
(Meu texto de ontem em A União)
Letra Lúdica
Hildeberto Barbosa Filho
Leo e Sandra
Que
seria do jornal se suas páginas se restringissem apenas às notícias? E, há pensar no conteúdo dessas notícias, talvez só o lado negativo da vida viesse à tona, com seu monstruoso cortejo de problemas e catástrofes.
A informação pela informação se faz, na mais das vezes, com os elementos de signos esvaziados ou com o tosco instrumental das estatísticas generalizantes. O fato ou a personagem aparecem aí sem a contextualização precisa, não raro transmutados nas fagulhas estéreis dos estereótipos e das frases de efeito.
Ainda bem que o jornal, e aqui me refiro especialmente ao impresso, traz também, no selo multifocal de sua sintaxe, a presença orgânica da opinião, o fio inquietante das subjetividades que sentem e pensam, sem temer as ressonâncias ambivalentes das palavras que pronunciam.
Não me espanta, portanto, saber que “ainda somos selvagens”, pela voz do jovem professor, poeta e articulista do jornal A União, em texto publicado em 18 de outubro passado. “A selva cada vez mais de pedra nos tem legado corações de concreto. A esperança é verde”, diz ele, em tom de protesto e de indignação, mas também com alguns lampejos utópicos.
Ali, manifestava sua insatisfação contra os que desrespeitam à natureza animal e os que agridem o meio ambiente, sem, contudo, incidir na arrogância nem no pernosticismo do discurso politicamente correto.
Aprecio aqueles que saem do seu ofício específico e se lançam na observação crítica do mundo, ostentando sua face cidadã. Nesse momento, o jornal abriga os sinais do pensamento e se transforma em solo de debates. As ideias circulam em estimulante ambiente de leitura.
Leo Barbosa tem usado seu espaço no jornal, enriquecendo o gênero opinativo ao mesmo tempo em que se permite guiar sua coluna quinzenal como plataforma reflexiva e pedagógica. A mim, me é muito salutar compartilhar das suas ideias e de seus conceitos. Quero crer que a sensibilidade do poeta e a inteligência do educador se conjugam na unidade crítica de seus artigos e opiniões.
Se nele me atenho ao fato de que ainda somos selvagens, medito, mais à frente, sobre a “impermanência”, de fundo heracliteano, que Sandra Raquew Azevedo põe em discussão, em sua coluna semanal do vetusto periódico.
Sandra foi uma de minhas alunas mais dedicadas e inteligentes. Hoje, doutora, escritora, militante, mãe, tornou-se também minha mestra. Seus artigos me parecem pequeninas e grandiosas aulas livres e espontâneas que me fazem pensar nos enigmas do mundo. Sobretudo, nos enigmas da condição feminina.
O estatuto da mulher, a pedagogia das viagens, o liame das mudanças, o fluxo indevassável do tempo, o olhar empático para com os dramas anônimos da alteridade, tudo é submetido, em sua escrita, ao calor de um método de abstração, a que não escapa a vulnerabilidade da vida.
O último parágrafo do seu texto tem a força fértil e a luz poderosa das verdades seminais. Cedo a ela o gosto visceral da palavra: “Às vezes, nós mulheres mudamos nossas peles num total silêncio, e quando vemos, atravessamos o estágio de estar em carne viva, vendo surgir novamente uma pele que cintila. Em qualquer etapa da vida é preciso estar inteira em nossa própria pele da alma”.
Perfeito. Leio isto num jornal. Isto salva um jornal. Lembra-me, em certo sentido a sextilha de ouro de Ricardo Reis, que assim canta: “Para ser grande, sê inteiro: nada / Teu exagera ou exclui. / Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fazes. / Assim em cada lago a lua toda / Brilha, porque alta vive”.