Areia de pote
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O Nordeste não é mais um cafundó, senhor articulista

Por: Francisco Gil Messias | 01/11/2024

O Nordeste não é mais um cafundó, senhor articulista

Francisco Gil Messias

gmessias@reitoria.ufpb.br


Desinformação? Improvável. Preconceito? Sem dúvida. Se um articulista regular de O Globo escreve nos dias de hoje que o Nordeste é um cafundó, não pode ser desinformação, só pode ser o velho preconceito sudestino, de cariocas e paulistanos “cosmopolitas”, contra os nordestinos de sempre, para eles, os “cosmopolitas”, eternos símbolos de atraso, ignorância e matutice. Pode?


Pois é, não pode. Há cinquenta anos, até que podia, admito. O Nordeste era então, para os metropolitanos do Sudeste, um verdadeiro fim de mundo. O Nordeste onde nasceu o Brasil, o Nordeste que dominou economicamente a colônia nos dois primeiros séculos, o Nordeste que até meados do século passado permaneceu quase que intocado pelo progresso, guardião involuntário dos resquícios do Brasil profundo. E, por que não dizê-lo?, o Nordeste explorado pelo resto do país por sua mão de obra barata e seus recursos naturais abundantes. Entretanto, atualmente, sabe-se, o Nordeste é outro, até nos sertões, e só não sabem os desinformados e os preconceituosos que assim insistem em continuar.


Mas já naqueles tempos não esqueçamos que o Nordeste dera ao Brasil, para citar só alguns, um Joaquim Nabuco, um Oliveira Lima, um Tobias Barreto, um Gilberto Freyre, um João Cabral de Melo Neto, um Pedro Américo, um José de Alencar, um Graciliano Ramos, uma Raquel de Queiroz, um José Américo de Almeida, um José Lins do Rego, um Epitácio Pessoa, um Ariano Suassuna, um Augusto dos Anjos, um Câmara Cascudo, um Celso Furtado, um Rui Barbosa, um Castro Alves, um Manuel Bandeira, um Jorge Amado, um Gilberto Amado, um João Gilberto, um Caetano Veloso, um Gláuber Rocha, um Chico Anísio, um Dom Hélder Câmara, um Luiz Gonzaga e um Barbosa Lima Sobrinho. Bastariam apenas estes para se formar um país glorioso. E, no entanto, existiram muitos, muitos outros - e outras. Na política, nas letras, na música e nas artes em geral.


Escreveu o seguinte em sua coluna de O Globo do dia 21 de outubro próximo passado (segunda-feira) o senhor Miguel de Almeida, referindo-se ao declínio do Partido dos Trabalhadores: “O partido agora se refugia no Nordeste, num movimento ocorrido anteriormente com a Arena, partido da ditadura militar, que reinou apenas nos cafundós depois da queda do regime”. Vejam só. A tradicional identificação do Nordeste com os cafundós. Nítida, cristalina e, para nós, imperdoável, claro. Ora se.


Imperdoável, sim senhor. Porque há um bom tempo nossa região deixou de ser um cafundó, um lugar ermo, uma cafua, um fim de mundo, segundo o dicionário. Nossas capitais se tornaram cidades desenvolvidas e atraentes, tanto para o turismo como para a moradia, como comprovam inumeráveis estrangeiros e brasileiros de outros lugares que vieram e vêm residir aqui, em busca de qualidade de vida, inencontrável no Rio e em São Paulo. Praias belíssimas de águas tépidas, shoppings confortáveis, restaurantes sofisticados, museus, um nível decente de segurança e outras comodidades. E não só nas capitais. No interior, as cidades também se desenvolveram, nem sempre no melhor caminho, é verdade, já que a televisão e sua influência têm feito mais mal que bem por esse Brasil afora, mas o fato é que é difícil encontrar cenários que possam ser chamados de...cafundó. Há cidades pequenas, claro, como em todo lugar, mas não cafundós. Cafundós são as periferias faveladas e violentas do Rio e de São Paulo, onde apenas se sobrevive, não se vive, até que os bandidos ponham fim à existência miserável dos moradores-reféns.


A ironia observada pelo articulista é que antes o Nordeste dava suporte ao partido da ditadura fascista. Agora sustenta igualmente o PT e suas esmolas eleitoreiras, seus clientelismo e assistencialismo arcaicos, suas promessas de coronel oportunista travestido de “pai dos pobres”. Vê-se a ausência de qualquer coerência ideológica. Quanto a isso, realmente não há do que nos orgulharmos. Neste aspecto, não evoluímos. Mas um dia chegaremos lá. Nossas universidades estão aí formando as novas gerações, as quais provavelmente saberão um dia dispensar, com senso critico, os “salvadores da pátria” de araque, sejam de que lado forem. 


E, diga-se, o preconceito também permanece quando cariocas e paulistanos insistem em  chamar de “paraíba” ou de “baiano” qualquer nordestino modesto que lhes sirvam na portaria do prédio ou no balcão da lanchonete, nas construções e nos táxis. Uma multidão de brasileiros subvalorizados, discriminados, desprezados e não raro maltratados em sua dignidade de cidadãos iguais a quaisquer outros. Brasileiros humildes que ajudaram e ajudam a erguer as metrópoles sudestinas, tão orgulhosas e não raro prepotentes em sua ignorância subdesenvolvida. 


Que um ignorante idiota persista nesse preconceito até dá para se entender. Mas um articulista de um grande jornal carioca, não. E não há desculpa. As emissoras de televisão e o cinema nacional terceiromundista alimentam a discriminação, na medida em que insistem em retratar o Nordeste e os nordestinos de forma estereotipada, caricatural. Sempre os cenários de seca e pobreza, sempre os personagens amatutados, folclóricos, como se ainda vivêssemos em pleno cangaço. Ah, quanta burrice – ou má-fé.


Até quando ouviremos, veremos e leremos tais idiotices sobre nós? Nossa vingança é vivermos bem por aqui (na medida do possível de cada um, claro). Indo ao Rio e a São Paulo apenas eventualmente, para usufruir do que têm de melhor a oferecer, num colonialismo ao contrário. Ir e vir. Voltar para bem viver na beira da praia ou nas serras verdejantes. E até mesmo em áreas menos hospitaleiras, se for o caso. Mas voltar. Porque aqui é melhor do que lá. Aqui é nosso lugar.


Se não buscasse sempre cultivar a paciência e os bons modos, eu diria ao lamentável articulista, em alto e bom som, que cafundó... é a vovozinha!  E estamos conversados.   


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