João Batista de Brito me trazendo de volta antigas leituras de Seleções, com seus imperdíveis relatos na seção Meu Tipo Inesquecível
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Tipos inesquecíveis são normalmente adultos, ou mesmo, idosos. Pois o meu – entendam se puderem - é uma criança. Menino da minha idade, João Kruta foi, no Jaguaribe dos anos cinquenta/sessenta, meu amigo de infância. Logo que o conheci, percebi que ele era diferente. Diferença que já vinha no sobrenome austríaco.
Com os garotos do bairro, eu brincava de pega na rua, jogava bola de gude, descia a ladeira do Varjão pra tomar banho nas águas do rio Jaguaribe, trocava gibi nas portas dos cinemas, aprendia e falava palavrões e fazia outras travessuras que meninos fazem.
Com João Kruta, não. Embora humilde, estava sempre decente e limpo, e, visivelmente, destoava dos outros garotos do bairro. Não brincava na rua, aliás, nunca o vi vadiando no bairro, a não ser quando ia à escola ou cumpria alguma tarefa doméstica. E isto não era vadiagem.
Embora fôssemos vizinhos de parede e meia, e embora as nossas famílias se dessem muito bem, o meu contato com Joca (seu apelido familiar) era, no máximo, à noite, logo após a janta, no terraço de sua casa, onde, dois pirralhos, conversávamos sobre coisas “sérias”, por exemplo, o edifício mais alto do mundo, o Empire State Building; a incrível velocidade dos aviões supersônicos, um livro que falava das Sete Maravilhas do Mundo; a última edição de “Seleções”... coisas assim de que nunca ouvira meus outros amigos falarem.
Ao contrário da nossa, sua casa tinha uma fachada bonita, com jardim e terraço. Ainda que modesta e pequena, por dentro era um brinco, lembrando residências europeias que via em filmes. Lembro bem de um compartimento repleto de materiais de marcenaria. Ocorre que o avô de Joca, o Mestre João Kruta (naquele tempo já falecido) havia sido um renomado professor desta disciplina na antiga Escola Industrial (mais tarde Escola técnica, e hoje IFPB). Joca, ele mesmo, mexia domesticamente com este ofício, e dele ganhei alguns mimos, como um caminhão de brinquedo com direção e tudo mais.
Foi Joca quem me conduziu ao que nunca imaginara pudesse existir: um local repleto de livros; livros que podiam ser lidos por todos, gratuitamente. Era a Biblioteca Pedro Moreno Gondim, ali na Av. Aderbal Piragibe, a poucos metros do Cinema Jaguaribe. Por influência dele, fiz meu cadastro e passei a ler coisas inimagináveis para o limitado contexto de Jaguaribe.
Foi com ele que tive minha primeira noção de alemão, língua falada por sua avó, Dona Leopoldina, sua tia, Dora, e ele mesmo. Ainda cursando o primário, meu contato com línguas estrangeiras era das telas dos cinemas, sempre Inglês, e, a partir de umas cartilhas austríacas, Joca me introduziu a um alemão básico, que ainda hoje retenho.
Não é que os Kruta não tivessem lazer. Nunca vou esquecer os piqueniques que Dora (a tia) organizava. Geralmente numa manhã de domingo, saía a turma toda, Joca, as irmãs, eu e minha irmãs mais novas, com Dora a nos guiar, em longa caminhada por uma estrada de barro, ladeira abaixo, ladeira acima (hoje a Av. Dom Pedro II), até a Granja São Rafael (hoje o campus da UFPB), onde passávamos o dia a brincar e a aprender sobre a agricultura do local. A entrada da Granja já pagava o cansaço da caminhada: um longo e largo corredor de eucaliptos que se tocavam no alto, formando uma espécie de amplo túnel vegetal que, para a minha imaginação de menino, era uma réplica do “portal do paraíso”.
Pelo menos nessas ocasiões, de ócio e relaxamento lúdico, eu não via diferença entre Joca e meus amigos de rua. Mas, no geral, sim.
Na verdade, uma das coisas que me fazia distinguir Joca dos meus outros amigos do bairro (além do comportamento reservado) era uma certa teimosia que ele demonstrava em não engolir opinião alheia às cegas. Por exemplo, um dia fui lhe contar o que ouvira em casa, que comunistas eram pessoas malvadas que comiam criancinhas., e ele, simplesmente, duvidou da história. Éramos miúdos demais para ter noção de ideologias, mas sua opinião foi aquela... e pronto.
Eu e ele tínhamos muito em comum – sobretudo, a ideia de que o mundo era muito maior e mais excitante que Jaguaribe – mas, claro, havia as diferenças, aos poucos evidenciadas, na medida em que crescíamos. Na primeira fase da nossa adolescência, isso já começava a ficar claro. Sem dúvida, Joca era mais racional que eu, e eu, mais emocional que ele. Além disso, ele tinha um fascínio pelas coisas técnicas e práticas. Eu, pelas coisas humanas e abstratas, como as línguas, a literatura e o cinema. Mais tarde na vida, ele morando no Rio e eu sempre em João Pessoa, isso iria aparecer nas nossas respectivas escolhas profissionais: Engenharia, para ele, Letras, para mim.
De todo jeito, quando olho pra trás, me dou conta da importância que teve na minha formação, como já disse, não um adulto cheio de sabedoria, mas um menino da minha idade, tão inexperiente quanto eu mesmo, e, ao mesmo tempo, tão maduro e tão seguro de si.
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