Carlos Aranha, vanguardista, plural e sozinho
Francisco Gil Messias
gmessias@reitoria.ufpb.br
Foi-se há poucos dias, aos 78 anos, Carlos Aranha, jornalista, escritor, compositor e agitador cultural, entre outras atividades e outros talentos. Antes de tudo, um inquieto, sempre em movimento, sempre fazendo “artes”, no bom sentido, como se dizia antigamente das crianças peraltas. E no caso de Aranha a palavra “artes” tem tudo a ver, pois ele foi essencialmente um artista, uma ampla vocação de artista, plenamente realizada ou não, não importa.
Nos últimos sessenta anos ele foi uma Presença (com P maiúsculo) na cena cultural paraibana. Protestando, compondo, cantando em festivais, escrevendo em jornais, publicando livros, sempre sendo ele mesmo, ou seja, vanguardeiro, plural e sozinho. Esta é a imagem que guardo dele, de quem não fui próximo, ressalto, para que fique claro que não pretendo ostentar intimidades que não tive. Mas como ignorar Aranha sendo um morador da aldeia minimamente informado? Por isso, pude acompanhá-lo, de longe, em sua caminhada de artista múltiplo e de agitador cultural. Seguindo mais ou menos seus passos pelos jornais e pelas conversas com um e com outro. Pois não passava em brancas nuvens pela cidade o agitado e criativo “Caranha”, como o chamavam alguns amigos de jornal e de vida. Rubens Nóbrega foi quem me revelou esse seu apelido emblemático.
Dizer que ele foi vanguardista é fácil. Pois ele de fato o foi – e em larga escala. Desde sempre. Ainda mocinho, o filho de Dona Antonieta, por quem expressava pública veneração, já foi “aprontando”. Lembro-me dele cabeludo e vestido rebeldemente ao estilo jovem dos anos 1960/1970, na linha transgressora dos Beatles, dos Rolling Stones e de outros ídolos da época. Ouso arriscar, pois com ele não convivi, que viveu intensamente, como poucos rapazes aldeãos de seu tempo, aquele marcante momento de transição mundial e brasileira, do ponto de vista comportamental e cultural. E ouso afirmar mais: viveu aquilo em sua plenitude possível, dadas as limitações do meio, e com todas as consequências, tanto as boas como as não tão boas assim. Sim, porque sabemos que o vanguardismo cobra um preço alto dos que o abraçam, preço que não raro uma vida inteira não é capaz de pagar. Aranha realmente fugiu das convenções vigentes e deliberadamente, de peito aberto, rompeu as ditas cujas, ao seu modo e dentro de suas possibilidades, que nem sempre foram as mais propícias. Foi um exemplo completo e acabado, no bom sentido, repito, do rebelde, do transgressor, do revolucionário e do arauto do futuro, podendo talvez, sob alguns aspectos – não todos -, ser comparado ao seu contemporâneo Ivo Bichara, também este uma figura fora do comum, que marcou presença na aldeia.
Dizer que ele foi plural também não é difícil. Tal como Mário de Andrade dizia de si mesmo, Aranha não foi apenas um, foi trezentos e cinquenta. No mínimo, digo eu. E não poderia ser diferente, pois transitando livremente por tantas áreas de atividade e por tantas tribos, teria que multiplicar-se necessariamente. Mas sem perder a identidade, a marca pessoal, a essência. Ser muitos sendo ele mesmo, o travesso rebento da professora Antonieta, também mãe do ameno médico e cronista Marcos, cuja memória reverencio. Não temeu Aranha a pluralidade, o pluralismo. Pois praticou-a desafiadoramente em muitas direções, como se atendesse à própria natureza versátil ou quisesse apenas dar o exemplo, mostrando que a vida é cubista, tem muitas facetas, como descobriu o genial e nem sempre compreendido Picasso.
Mas, por último, dizer que ele foi sozinho, sem tê-lo conhecido de perto, aí é já assumir um certo risco de errar, que temerariamente assumo, pois foi esta a impressão que dele me ficou – e não apenas por conta de seus derradeiros dias neste mundo, estes sim marcados por uma indisfarçada solidão, que nem a visita eventual de algum amigo conseguiu amenizar – nem esconder. Vejo-o solitário, do mesmo modo que vejo todos os vanguardeiros, daqui e de todo lugar – e também de todos os tempos. Solitário de uma solidão que é o imposto pago pela ousadia de ir à frente dos contemporâneos, a anunciar e a propor novos tempos. Aqueles que haverão de vir, por mais resistência que haja por parte do establishment, já que esta é a lei da vida e do mundo: o sempre renovar-se, mesmo que conservando algo das tradições, pois que a marcha civilizacional consiste exatamente nesse acúmulo contínuo de experiências humanas que se remoçam e se preservam. Entre os preços que pagou por sua rebeldia, com certeza consta esse da solidão, mesmo quando eventualmente acompanhado.
Na inquietude e na multiplicidade dos talentos e das atividades culturais, ele e Wills Leal foram parecidos, cada qual conservando suas peculiaridades, claro. Mas ambos, como agitadores da cultura local, ao lado de alguns poucos mais, dominaram durante anos a paisagem aldeã. Essas figuras carismáticas muitas vezes, infelizmente, só passam a ser mais valorizadas quando desaparecem. Sobre Wills, escrevi quando ele ainda estava entre nós, exaltando seu valor. Quanto a Aranha, penitencio-me de só agora fazê-lo. Mas antes tarde do que nunca.
Por paradoxal que possa parecer – e os paradoxos não são estranhos a personagens como Aranha -, a culminância de sua trajetória humana e profissional foi sua entrada na Academia Paraibana de Letras, com direito aos veneráveis e tradicionalíssimos rituais e símbolos acadêmicos. Neste ponto, teve ele mais sorte que Oswald de Andrade, outro rebelde, que, no fim da vida, quis ingressar na ABL, mas foi rejeitado, certamente como troco pelas inúmeras ofensas anteriores que, antropófago, fizera à instituição. Razão pela qual, neste particular, pode-se dizer que Oswald terminou por devorar a si mesmo. E a vetusta Academia riu por último. Como riu por último a Academia Sueca ao conceder o Nobel de literatura a Bob Dylan, ícone das canções de protesto…
Uma vez na APL, pode-se supor que ali começou o crepúsculo de Carlos Aranha. Em todos os sentidos. O que não é de estranhar, pois é o que costuma acontecer aos que alcançam o cume da montanha: a partir dali, inicia-se a inevitável descida à definitiva planície, aquela que, democraticamente, a todos nivela no fim de tudo.
Não consigo prever qual será a posteridade de Aranha. Nem mesmo se haverá, para ele e sua obra, alguma posteridade. Isso só o tempo dirá. Mas que marcou a aldeia e seus contemporâneos, dúvida não há.
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