Um velho transeunte, certa vez, abordou uma criança que tinha como habitat uma das ruas mais ricas da grande metrópole brasileira e fez a seguinte pergunta: minha filha, qual é o dia em que se comemora seu aniversário? Com uma timidez pálida de maus tratos, a criança lançou um olhar límpido e crítico para o senhor e disse: nada tenho a comemorar, nem sei se existo. Se sou alegre, melancólica, fria, triste. Não tenho teto, vivo ao relento, à mercê das intempéries. Percebes que estou trêmula, faminta, quase desnuda, sem quaisquer tipos de agasalhos? Oh, senhor! A sociedade me enxerga como delinquente, resíduo humano. Ah, nunca tive um colo para me fazer ninar, tampouco frequentei uma sala de aula. Será que o senhor acredita em mim? Ou será mais um para me xingar de delinquente? Às vezes, senhor, não sei se penso, se ajo ou se me defendo, nada disso sei. Se sou alegre, triste, bonita ou feia, nem espelho tenho. Em mim, tudo é turvo, até a própria vida.
O velho transeunte, que dantes havia feito a abordagem, refletiu por um instante e cunhou a seguinte frase: sabes, por ventura, o nome da mulher que te pariu? Trêmula, sucumbida em lágrimas e medo, disse ela: infelizmente, não, senhor. Penso que sou filha do além, oriunda, talvez, de um estupro coletivo do desejo carnal. Senhor! Nesta selva de pedra, todos me condenam, agridem e, às vezes, me abusam em troca de sexo, mesmo sendo uma criança indefesa. Aqui, a infância não importa. Sou recruta da ignorância da vaidade humana, herdeira da morte prematura, cobaia de projetos políticos ambiciosos e renegada das oportunidades sociais. O “ABC” da linguagem da rua é extraído da literatura da selva. Muitos dos que habitam as ruas não entram nas estatísticas oficiais, são órfãos da civilização, da escola, do lazer. Os homens que cultuam a especulação financeira e idolatram o PIB, não nos enxergam. Oh, senhor! Tenho que fugir, pois os agentes do rapa estão se aproximando. Por favor, desculpe-me. Isso é lei da selva, senhor!
A bem-dizer, a lei que julga os filhos das ruas é a negação do direito à vida. Aqui, ou se morre ou se mata. Subsistir é um caminho tenebroso, resistir é fatal, reagir é ficar à margem da civilidade. Não existem argumentos factuais para justificação que comprovem que são criaturas humanas. Pois, não somos objetos de pesquisas censitárias. “De acordo com estimativas de órgãos demográficos internacionais, a população mundial atual (em junho de 2024) é de, aproximadamente, 8,11 bilhões de pessoas”. “A população do Brasil é formada por cerca de 203.062.512 habitantes. Apesar da redução do crescimento nas últimas décadas, o Brasil é um dos países mais populosos do mundo”. Neste contexto, onde estão inseridas as crianças que habitam as ruas? Uma reflexão para análise.
Caldas
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