Publicado em 4 de setembro de 2024 por Tribuna da Internet
Conrado Hübner Mendes
Folha
Do casamento da democracia com o constitucionalismo nasceu o regime com maior legitimidade moral na história da política. Um casamento conturbado. Enquanto uma pede poder para o povo, o outro pede limite. Enquanto uma carrega a vontade agonística de governar, o outro pede moderação. Uma extravasa o desejo coletivo, o outro institucionaliza controle.
Democracias constitucionais minimamente merecedoras do nome ainda gozam de credencial de legitimidade padrão ouro. Eleições livres, competição entre adversários, possibilitar ao derrotado ser vitorioso amanhã e vice-versa; desconcentrar o poder político e econômico, proteger direitos, garantir que a fúria das maiorias não suprima a liberdade das minorias, que os mais fortes não esmaguem os mais fracos: há tensões por onde se olhe.
MUITA FARSA – As constituições brasileiras tentaram se matricular nessa tradição do constitucionalismo democrático. Uma história bastante farsesca: constituições sem democracia, sem sufrágio universal, sem eleições isentas de fraude, sem Judiciário independente, sem proteção de liberdades, textos redigidos nas salinhas de estar da elite branca. Constituições sem constitucionalismo.
A de 1988 tentou entregar algo diferente. Produzida por Congresso constituinte pós-ditadura, politicamente mais diverso, permeado por inédita participação de múltiplos grupos sociais (e outros corporativistas). Mesmo vigiada por militares, que aceitaram a transição para a democracia desde que permanecessem intocados fora dela, saiu da Constituinte um texto inovador nas promessas, criativo na engenharia institucional. Um pacto de equilíbrio, ideologicamente eclético, não revolucionário.
Pela primeira vez um compromisso claro de reduzir pobreza e desigualdades, de proteção da função social da propriedade, do ambiente e das futuras gerações, de povos originários, de ampliação de políticas públicas, de direitos universais e sistemas públicos de saúde e educação, de livre concorrência.
RETROCESSO- Era um compromisso de redução gradual do PIBB (Produto Interno da Brutalidade Brasileira) e de nosso entulho autoritário. Passados 35 anos, apesar dos avanços em programas sociais, o PIBB aumentou. O entulho autoritário virou estoque renovado. A dívida histórica parou na nota promissória.
Mas generalização retórica não basta. A medida do retrocesso precisa ser calculada. Empiricamente e normativamente. Não há parâmetro melhor para essa contabilidade do que voltar ao texto dessa momentânea pretensão constitucionalista, quando foi possível olhar o passado e imaginar o futuro a partir da utopia, da esperança e do ideal de progresso, não da distopia, do pessimismo e da expectativa inevitável do retrocesso.
A marcha do retrocesso entrou numa nova fase. Descobriram estar fácil esvaziar ou destruir a Constituição sem mudar seu texto, sem decretar formalmente seu fim. O plano de liquidação de ativos constitucionais se expressa, por um lado, numa tenebrosa agenda legislativa. Por outro, por arranjos informais entre os Poderes que rejeitam institucionalidade.
TUDO AO CONTRÁRIO – No varejo cotidiano de nossas indignações, perdemos de vista a magnitude do projeto: turbinar o colapso climático, multiplicar o fogo e o desmatamento, privatizar acesso a praias, anistiar golpistas, militarizar escolas, milicianizar polícias, legalizar milícias, armar milicianos, prender meninas estupradas e aliviar pena do estuprador de meninas, violentar indígenas, afagar milicos, desinvestir em direitos, transformar a família constitucional em família colonial e patriarcal.
Enfim, transformar jurisdição em negociação de direitos indisponíveis, legislação em alocação clientelista de orçamentos secretos, sufocar capacidade governamental do Executivo.
Caracterizar o momento como um embate entre esquerda e direita perde de vista um confronto mais profundo entre Constituição e forças pré-constitucionais e extremistas. Ainda nos resta, pelo menos, o argumento constitucional. Que não pode permanecer monopólio de juristas. Para que consigamos, pelo menos, descrever o que se passa e contar essa história. Assim poderia começar o prefácio a um manifesto constitucionalista.
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