Enem: Black Lives Matter, capitalismo malvado e memes perigosos
Catarina Rochamonte (O Antagonista)
Nesse domingo, 3 de novembro, ocorreu a primeira etapa do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2024, que consistiu em 45 questões de Linguagem, códigos e suas tecnologias, 45 questões de Ciência Humanas e suas tecnologias e uma proposta de redação de texto dissertativo-argumentativo.
O tema da redação foi “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Dentre os textos motivadores um samba enredo da Mangueira, de 2019, que termina dizendo “Brasil, chegou a sua vez, de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês” e uma imagem de alunos admirando um grafite de Zumbi dos Palmares.
O problema racial, porém, não se limitou à proposta de redação, mas foi repisado em inúmeras questões ao longo da prova, cujas questões enumerarei, nesse artigo, considerando o caderno verde do Enem.
Os candidatos depararam-se, na questão 68, com um texto que tratava de maneira positiva e elogiosa o movimento ativista americano Black Lives Matter. O fragmento de texto citado abordava a “diversidade do grupo identitário”, sendo a abordagem de tal relação a resposta correta esperada para a questão:
“Black Lives Matter estima as vidas dos negros e negras homossexuais e transexuais, pessoas incapacitadas, negros sem documentos ou com antecedentes criminais, mulheres e as vidas de todos os negros de todo o espectro de gêneros”, dizia o enunciado a ser interpretado.
É lamentável que tal movimento seja apresentado assim de maneira acrítica a milhões de jovens, como se se tratasse de um movimento absolutamente legítimo e incontroverso. Tal não é, entretanto, o caso.
Em meu artigo intitulado “Racismo anti-judaico no Black Lives Matter: Risério tinha razão”, publicado aqui em O Antagonista, em novembro de 2023, comentei uma extensa matéria publicada no jornal suíço Neue Zürcher Zeitung (NZZ) que expôs inúmeras evidências de antissemitismo no referido movimento.
“Os combatentes pela liberdade palestina não são terroristas! Apoiaremos totalmente a resistência na Palestina”, escreveu o Black Lives Matter nas suas redes sociais em 9 de outubro de 2023, logo após o massacre de 7 de outubro perpetrado pelos terroristas do Hamas contra civis em Israel.
Mas remeto o leitor ao meu artigo anterior, deixo de lado a questão que prestou homenagem ao movimento negro radical antissemita e sigo comentando algumas questões da prova do primeiro dia do Enem .
A questão 36 cita “a digital influencer e youtuber criadora de projeto digital Preta Pariu” e seu “experimento” que corroborou o alerta de influenciadores negros de que seus conteúdos têm “muito menos repercussão em suas postagens e nas entregas do seu conteúdo quando comparadas com influenciadores brancos.”
O método científico usado nesse experimento deve ter sido a ferramenta de análise de engajamento do Instagram da tal influencer mas, para o Inep, isso é o que menos importa. Importante é se indignar com o fato de que, ao publicar fotos de modelos brancas, a ferramenta estatística “aferiu um aumento de 6.000% em seu alcance.”
Meu objetivo aqui não é desmerecer ou desconsiderar as lutas da comunidade negra, mas questionar o porquê do excesso de questões relativas a essa temática em uma prova que, em tese, deveria testar conhecimentos de linguagem e de ciências humanas.
Além das duas questões já citadas, houve ainda uma questão sobre exploração da força de trabalho da população negra (32), outra sobre arte afro-brasileira (35), outra sobre quilombos (51) e ainda outra sobre abolicionismo (75).
Não explicitei acima quais questões estavam na prova de linguagens e quais estavam na prova de ciências humanas porque as provas praticamente se confundem, ambas dependendo apenas de uma mínima capacidade de interpretação de texto para serem bem respondidas. Isso significa que o Enem não cobra quase nada de conhecimentos específicos e que o êxito na prova depende apenas de ler os textos e o mundo através e uma lente politicamente correta e progressista.
Em absolutamente nenhuma questão o estudante é testado em seu conhecimento da norma culta da Língua Portuguesa, mas ele precisará interpretar o texto da questão 8 cujo título é “Falar errado é uma arte, Arnesto!” e o da questão 26, que mostra uma crítica ao preciosismo linguístico.
Em quase nenhuma questão o estudante será testado em seus conhecimentos específicos sobre fatos históricos, mas ele precisará interpretar, na questão 66, um trecho de Eduardo Galeano segundo o qual Bartolomeu de Las Casas, mesmo sendo um frade dominicano, era “o anti-Cristo dos senhores” e inferir que ele era detestado pelos colonizadores.
Em relação ao conteúdo de Geografia não há mapas a analisar, mas há a necessidade de responder, na questão 53, que a cartografia é usada essencialmente para “sustentação de hegemonias territoriais.”
Para continuar gabaritando a prova de ciências humanas o estudante deverá seguir firme e responder que há uma assimetria política na ONU devido ao poder de veto dos grupos permanentes (Q 48), que o capitalismo só pode funcionar tentando reduzir e desumanizar a atividade humana, pois isso é uma contradição interna devido à alienação decorrente da organização do trabalho (Q 49), que os grupos dominantes são responsáveis por uma injustiça epistêmica (Q 62) e que a reflexão provocada pela arte é abandonada pela indústria cultural como parte de um mecanismo de controle social (Q74).
O candidato deverá perseverar na leitura dos infindáveis textos e responder perguntas sobre mudanças climáticas, pobreza menstrual, problematização da masculinização do universo marcial, etc.
Tais exemplos já são suficientes para deixar claro que o perfil do aluno nota 1000 do Enem é, para usar uma expressão do Luís Felipe Pondé, o do “inteligentinho” de esquerda, o carinha antenado com as pautas progressistas da hora, que acompanha a mídia cult e conhece os jargões dos intelectuais da bolha.
Bolha essa que, vez ou outra, estoura quando alguém ousa postar memes nas redes sociais ridicularizando os adeptos dessa nova seita woke.
Um risco que não se pode desconsiderar. Daí a importância estratégica da questão 14 que trouxe o “educativo” texto intitulado “memes e fake news: o impacto na educação das crianças” que lança a seguinte pergunta: “será que todo mundo está conseguindo traduzir as mensagens postadas, curtidas e compartilhadas?”
Não. Não estamos conseguindo traduzir. Precisamos de pessoas iluminadas (como a que colocou essa questão no Enem) que façam para nós uma “análise crítica de memes”, abram nossa mente obtusa e faça com que “o que antes era engraçado” seja “visto com outros olhos”. Chamam a isso “letramento político e midiático”.
O Enem só expõe a superfície do problema. O fundo do poço da educação brasileira é profundo. Creio que dessa geração só se salvarão os autodidatas. O restante vai virar uma massa homogênea estúpida e intolerante que, paradoxalmente, se achará boa o suficiente para salvar o mundo.
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