A ameaça nuclear de Putin e o sentido da política para o Ocidente - Catarina Rochamonte

A ameaça nuclear de Putin e o sentido da política para o Ocidente - Catarina Rochamonte
22/11/2024


Há quem defenda que a Terceira Guerra Mundial já começou. Há quem julgue que falar em terceira guerra mundial é exagero.

O fato é que se desdobram diante dos nossos olhos sonolentos e incrédulos uma série de alianças e movimentações militares muito preocupantes.

A sequência de lances da última semana não pode ser menosprezada.

Em resposta ao envio de tropas norte-coreanas para lutar pela Rússia na guerra de invasão contra a Ucrânia, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, liberou o uso de mísseis de longo alcance contra as regiões russas de fronteira.

Ato contínuo, o tirano da Rússia, Vladimir Putin, revisou mais uma vez a doutrina nacional de defesa, a fim de alargar as condições de uso do arsenal nuclear.

Na nova doutrina, o lançamento de mísseis de longo alcance contra a Rússia passou a ser motivo para uso de armas nucleares.

Mísseis esses que logo foram disparados pela Ucrânia.

Sergey Lavrov, o ministro das relações exteriores da Rússia declarou então – em solo brasileiro, pois aqui estava por ocasião da cúpula do G20 – que o ato era visto “como uma nova fase da guerra ocidental contra a Rússia” e que seu país responderia de maneira “apropriada”.

É verdade que Putin já levantou o espantalho nuclear dezenas de vezes, mas até para quem está acostumado com a retórica das trocas de ameaças bélicas, o momento é preocupante.

Poder de destruição e poder político

Recordo-me de um trabalho escolar de História que precisei fazer, em 1995, a fim de marcar os cinquenta anos do lançamento da bomba atômica sobre as cidades japoneses Hiroshima e Nagazaki.

Aluna aplicada que eu era, fiz boa pesquisa; o que li e as imagens que vi foram impressionantes para os meus doze anos de idade.

Quase consigo reviver a sensação de choque e angústia com que colei os recortes de uma edição especial sobre o tema em uma cartolina para a apresentação escolar.

Um clarão apocalíptico e milhares de vidas aniquiladas instantaneamente. A liberação de uma enorme concentração de energia e seus efeitos devastadores. A radioatividade como terrível subproduto da já pavorosa explosão.

Se há um inconsciente coletivo, essa imagem provavelmente está lá, nas profundezas do nosso psiquismo, e os acontecimentos atuais são de modo a favorecer a sua eclosão em estranhos pesadelos.

A jogada do Kremlin

Putin está, mais uma vez, blefando? Tal questão nos desperta para a enorme responsabilidade ética que pesa sobre a política atual.

Em fragmentos de textos nos quais disserta sobre a definição de Política, a pensadora Hannah Arendt explica que a pergunta sobre se a política ainda tem algum sentido é “forçosamente formulada em vista do monstruoso desenvolvimento das modernas possibilidades de destruição cujo monopólio os Estados detêm”.

É no mínimo instável uma situação na qual “a continuidade da existência da humanidade e talvez de toda a vida orgânica da terra” depende da política; e de políticos que costumam blefar.

Questionada, em entrevista ao jornal alemão Tagesspiegel, sobre a probabilidade real de uma guerra nuclear, além de toda a retórica, Sharon K. Weiner, uma professora de Relações Internacionais da Universidade Princeton e especialista em estratégia de armas nucleares respondeu: “O que me incomoda é que, a despeito do fato de que morreríamos numa guerra nuclear, ambos não temos voz na questão de saber se as armas nucleares serão ou não utilizadas”.

Alguns trechos dessa interessante entrevista, publicada em abril deste ano, me chamaram atenção.

Segundo a professora, “não existe nenhum acordo secreto para impedir o uso de armas nucleares antes que o mundo seja destruído”.

Ninguém sabe bem o que acontecerá se a Rússia realmente usar armas nucleares contra a Ucrânia porque não há diretrizes de como evitar uma escalada.

A única estratégica com a qual se trabalha é a lógica de que “a outra parte poderá, em algum momento, sentir-se compelida a desescalar – simplesmente para salvar o mundo”.

A hipótese de que não haverá uma guerra nuclear sustenta-se, portanto, em uma crença na racionalidade dos políticos que têm poder de decisão sobre o uso de tais armas. Ninguém usaria armas nucleares porque o mundo poderia acabar.

Ninguém é doido de começar uma coisa dessas”, ouço por aí.

Não me parece que este seja um argumento decisivo e tranquilizador. Há, pois, alguma probabilidade de que o atual conflito se desenvolva da pior forma possível.

Isso significa que o Ocidente deve se render às ameças de Putin? Absolutamente não.

Justiça e liberdade

Nenhum discurso acerca do que deve ou não ser feito pode desconsiderar o risco envolvido em toda essa questão.

São vidas humanas que estão em jogo, vidas vulneráveis, vidas inocentes, que sucumbirão à insanidade dos que detêm o poder.

Dito isso, é necessário calibrar a discussão reafirmando nossos valores.

Não se pode desconsiderar a força do ser humano movido por verdadeiros propósitos de justiça e de amor à liberdade.

Daí a importância da consciência daquilo que se está defendendo quando se tenta deter as tentativas expansionistas de um ditador.

Se não soubermos pelo quê lutamos, sucumbiremos. Pouco importa que não façamos parte das grandes potências; estamos no mundo e este não é apenas um conflito regional.

O que há de mais urgente para um país como o nosso, que não está no meio da guerra, é realinharmo-nos com os países que defendem os valores da liberdade e da justiça.

A nossa política deve ser aquela que nos foi legada por séculos de processo civilizatório; não faz sentido nos unirmos a regimes políticos que se caracterizam pelo uso da força contra o seu próprio povo.

Jamais deveríamos nos apartar da comunidade daqueles que defendem a liberdade e resistem à tirania. A opressão imposta pelos governantes aos habitantes da Rússia, da China, do Irã, da Coreia do Norte é um claro sinal de que não é esse o lado que deveríamos apoiar.

Recuperemos, pois, a sanidade política no Brasil para que, em meio à crescente conflagração global, possamos passar pelas turbulências bélicas numa posição digna e legítima.

Não temos muito o que fazer diante da eclosão de uma guerra mundial, mas deveríamos, pelo menos, saber os valores que nos norteiam como povo, como nação. São os mesmos que nos norteiam e nos preservam como indivíduos.

Não há fronteira para isso. Sabemos que somos todos irmãos.


FONTE: Crusoé (crusoe.com.br)

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