MEU
DEPOIMENTO SOBRE O
XXX
CONGRESSO DA UNE
Rubens Pinto Lyra (*)
NA PRAÇA VEREADOR JOSÉ MENDES, EM FRENTE AO
PAÇO MUNICIPAL DE IBIÚNA, ENCONTRA-SE MONUMENTO EM HOMENAGEM AOS ESTUDANTES QUE
PARTICIPARAM DO XXX CONGRESSO DA UNE NESSA CIDADE.
Nossas trajetórias interrompidas
não têm preço, nem retorno
tudo foi consumado
tudo foi consumido
do nosso melhor tempo de sonhar.
INTRODUÇÃO
Afastado da
universidade durante o ano de 1964, por força da cassação de meus direitos de
estudar, já no primeiro ano do curso de Direito, voltei, em 1965, a curso,
participando intensamente, sobretudo no ano de 1968, das manifestações contra a
ditadura e, em particular, contra sua política para a universidade. O foco da
mobilização dos estudantes foi, na questão educacional, a perspectiva da
assinatura dos Acordos MEC-USAID. No
plano internacional, a guerra do Vietnã provocou forte repercussão no movimento
estudantil. Fui designado pelo DCE para atuar como Promotor, tendo os Estados
Unidos como réu, em 1967, em júri realizado no Clube do Estudante
Universitário, sediado no Cassino da Lagoa, quartel general das batalhas
campais que travamos contra a polícia.
Apesar da modéstia do evento, minha participação nesse “Júri simulado” mereceu
registro do Serviço Nacional de Informações (SNI). (DIAS: 2021, p. 198). . Também distribuí, em
várias ocasiões, nos cinemas de João Pessoa,
panfletos clandestinos preconizando a derrubada da ditadura. E busquei , no âmbito da Faculdade de Direito, de
perfil conservador, não só participar de atividades políticas, mas também, organizando
competições, exibindo filmes de arte e integrando comissões do Diretório
Acadêmico. Marcus Paiva, à época, principal líder
do movimento secundarista de 1968, afirmou, em depoimento, que “entre os universitários, eu me lembro de
Rubens Pinto Lyra. Lembro da figura dele, no Ponto de Cem Réis, fazendo discurso.
Ele subia num tamborete e ficava falando” ROCHA e DIAS FERNANDES (Vol. I)
2021, p.94). Minha intensa participação
no movimento estudantil secundarista, somada à atuação contra o regime militar
em 1968, acima descrita, levou a Ação Popular (AP) a convidar-me, mesmo sem integrar os seus
quadros, a ser seu candidato à
Presidência do DCE da UFPB, contra o candidato
da aliança PCB-PCBR. A AP, à época, era crítica do modelo leninista e
soviético de socialismo. A correlação de forças,
francamente favorável à candidatura adversária, determinou a vitória do candidato
desses partidos. Vale
lembrar a influência, em todo o mundo, do famoso Maio de 1968 francês,
movimento estudantil com desdobramentos que quase abalaram os alicerces da
República Francesa, projetando-se, inclusive no movimento estudantil
universitário brasileiro. A
Primavera libertária de maio destacou-se, entre outros aspectos, por colocar em questão o modelo “socialista”
hegemônico e por propor uma sociedade radicalmente democrática e libertária
(LYRA, 2021, p. 299-303).
O
CONGRESSO DA UNE
A
conjuntura Em outubro de 1968, fui eleito Delegado
– o único- da Faculdade de Direito DA
UFPB ao XXX Congresso dessa entidade, previsto para ser realizado nesse mesmo
mês em Ibiúna (SP), contra a mesma aliança que fora vitoriosa para a
Presidência do DCE. Sublinhe-se que esse Congresso mal foi esboçado, pois, já no início do
cumprimento da sua pauta , foi dissolvido pela Polícia Militar De São Paulo, A conjuntura
estava marcada pela radicalização política, a menos de três meses de decretação
do Ato Institucional nº5, suporte para todos os atos discricionários e violências cometidas pela Junta Militar e
pelos Governos dos presidentes militares que a sucederam. Parte
da esquerda já tinha caído na clandestinidade. No plano local, ainda em agosto,
em plena eleição do DCE, vários colegas haviam tido a prisão preventiva
decretada entre os quais José Ferreira, Presidente do DCE e João Roberto Souza
Borges dirigente da AP e Presidente eleito do Diretório de Medicina, que foi
posteriormente encontrado morto, em circunstâncias até hoje não esclarecidas. Outro militante de destaque da AP
foi Socorro Fragoso, estudante de Serviço Social da UFPB e dirigente da AP. Foi
obrigada, durante anos, a permanecer na clandestinidade. Com a redemocratização
chegou a ser eleita Deputada Federal, com o nome de Jô Morais, pelo PC do B do
Estado de Minas. Também teve protagonismo na luta
contra a ditadura o universitário Simão Almeida, militante do PC do B, que,
como Socorro, amargou, igualmente, longos anos de clandestinidade, sendo os
dois apoiadores, juntamente com João Roberto, de maior destaque da minha
candidatura à Presidência do DCE, Simão, com o retorno à democracia, dedicou-se
também à atividade parlamentar, sendo,
por duas vezes, eleito Deputado Estadual.
A
organização do congresso
As
características da organização do XXX Congresso da UNE denunciam o caráter
vanguardista das concepções dos seus organizadores: foi projetado para ficar totalmente
isolado das “massas”, como se dizia. Nós, os participantes, não sabíamos como havíamos chegado lá, e de lá
saímos sem saber onde estávamos. Os
congressistas foram recepcionados por participantes armados, postados na
entrada do local onde se realizaria o conclave. Passaram privações, nos quatro
dias em que estiveram no sitio que sediaria o congresso, no município de Ibiúna
(SP), ficando consideravelmente enfraquecidos. Participaram de uma espécie de adestramento
para a guerrilha, sem que jamais tivessem sido consultados sobre seu interesse em participar dessa experiência. Não se trata apenas de uma opinião
pessoal, conforme se depreende dessa curta passagem do livro de Zuenir Ventura
sobre o ano de 1968
“Ao chegar no sítio, o
Presidente da União Metropolitana de Estudantes de São Paulo, Vladimir Palmeira,
teve a sensação de estar desembarcando num acampamento de guerrilha (1988,
p. 246)”.
Palmeira era o principal líder do movimento
estudantil universitário.
Uma
jovem participante do congresso, em reportagem da então famosa revista O Cruzeiro,
revelou que
“viveu momentos de desespero:
entre dormir e comer, era necessário uma escolha decisiva: os que ficavam nas
longas filas de comida não conseguiam vaga para deitar. Às três da manhã quem
estava dormindo, era obrigado a ceder o lugar a quem permanecia no relento,
esperando a vez de descansar. A maioria não tinha condições de suportar mais um
dia que fosse” (LUZ: 1968). Sou testemunha dessas condições, na realidade piores do
que as descritas, pois a comida era quase inexistente, de péssima qualidade e
as acomodações para a dormida mais do que precárias
“Já havia um caso de cachumba
e outro de hepatite. Além disso, três pessoas haviam desmaiado de fraqueza. O serviço médico
da Polícia começou a distribuir açúcar, pois constatou ser grande a carência de
glicose” (O CONGRESSO:1968). As
instalações destinadas à realização do Congresso ( e que funcionaram, também,
como dormitório) , eram na verdade um
buraco, cavado em um barranco, com degraus que serviam de arquibancada, tendo
parte delas, inclusive, desmoronado, em função das fortes chuvas que se
abateram no local. E como os setores vanguardistas do movimento universitário
se consideravam iluminados, constituídos por quem, supostamente, estudou a
Revolução e acreditava estar praticando-a, se julgaram no direito de impor suas
concepções a todos. O
comportamento dos organizadores
A
autoconfiança excessiva, e a incompetência dos organizadores do congresso, fez
com que a Polícia paulista localizasse, com facilidade, o local onde estavam
reunidos os seus participantes e os prendessem. Quem tivesse, anteriormente,
querido sair, não sairia, porque a entrada do sitio permaneceu, todo, o tempo,
guardada por integrantes armados da organização do Congresso.
Impressiona, para pretensos instrutores de guerrilha, o seu despreparo. Relatam
várias reportagens da época que havia
quem fosse fazer cobranças ao dono do sítio onde foi albergado o congresso da
UNE. Encarregados da segurança desse conclave prenderam um dele por dois dias e
terminaram por soltá-lo. O
personagem que foi preso denunciou a prisão à polícia e só esse fato foi suficiente
para comprometer o congresso. Também, a inusitada movimentação na pequena
cidade de Ibiúna, que nunca recebia visitantes em quantidade, despertou
igualmente as suspeitas da polícia (VENTURA:1988, p.245).
Conforme
descreve Cláudio José Lopes Rodrigues
“O
XXX Congresso da clandestina UNE se constituiu um autêntico segredo de
polichinelo. Foi abortado na fria e chuvosa manhã de sábado, 12 de outubro de
1968, quando 400 soldados da Força Pública de São Paulo e agentes do DOPS
invadiram o sitio Murundu, sede do encontro, nos arredores do município
paulista de Ibiúna, sob o comando dos delegados paulistas Orlando Rosante e
Paulo Buoncristiano e do Coronel
Barsotti, Comandante do 7º Batalhão da Força Pública”. 0 “portentoso arsenal”
encontrado : duas Berretas, uma Lugger e duas carabinas” (O CONGRESSO:1968).
Prisão e libertação
Registre-se
inicialmente que a detenção dos estudantes em Ibiúna correspondeu a maior prisão coletiva até
então ocorrida no Brasil. Segundo Zuenir
Ventura “o número de estudantes presos varia, segundo a fonte, entre 750 a mais
de 1.500” (1988,p.239).
Durante
a “hospedagem” desses estudantes no presídio Tiradentes, não se teve
conhecimento de maus tratos, nem de torturas, panorama que mudou radicalmente
com a edição, em 13 de dezembro deste ano de 1968, do Ato Institucional nº 5. Fizemos greve de fome, em protesto contra a privação
de nossa liberdade e contra a comida, de péssima qualidade. Entoávamos constantemente o hino Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós.
Das lutas, nas tempestades, dá que
ouçamos a sua voz. Na Paraíba, fomos
libertados, ao que se dizia, por um acordo feito com o Governador João Agripino
Maia, pai de um dos congressistas, Fábio Maia, que estudava Engenharia na UFPE,
com o então Governador de São Paulo, Abreu Sodré. Mas os congressistas dos
outros Estados, dias mais tarde, também foram liberados. Fui
o primeiro a retornar a João Pessoa. Dei entrevista a respeito do Congresso da
UNE ao jornal Correio da Paraíba, desmentindo que tivéssemos sido torturados
(REGRESSAM: 1968). Na
Paraíba, assim como nos outros Estados, enquanto os delegados ao congresso
estavam presos, as lideranças estudantis realizaram várias manifestações de
protesto, exigindo a libertação dos seus participantes. Poucos dias depois da volta de
Ibiúna, tivemos o lance final: a eleição, feita clandestinamente,, do Presidente
da UNE. Jean Marc Von Der Weid, candidato da AP, eleito contra Wladimir Palmeira.
Um depoimento sobre minha atuação
Em artigo
publicado na Revista Práxis Educacional, o prof. Rogério de Araújo Lima avaliou
a minha atuação como opositor do regime militar da seguinte forma:
“Rubens
Pinto Lyra é uma das testemunhas mais notáveis do movimento estudantil de
resistência ao golpe e de enfrentamento à ditadura. Isso explica a sua participação em mais de um
fórum da Comissão da Verdade da Paraíba e a dedicação de um momento (oitiva) só
para seu testemunho. Nessa oitiva, que leva seu nome como título, narra sua
permanente militância política, que adentrou no exercício da docência de nível
superior” (2019: p. 141).
Reflexão
crítica
Necessário, em primeiro lugar, refletir sobre
as condicionantes da ação política do movimento universitário e, mais
geralmente, da esquerda socialista, à época, determinada, essencialmente, pelo
maniqueísmo ideológico então vigente na esquerda marxista. Avulta, nesse
contexto, o papel da ideologia vanguardista, que sempre imaginou a revolução
batendo à nossa porta. Esta ideologia levou o movimento estudantil
universitário à falta de compreensão da correlação de forças desfavorável entre
o regime militar e a esquerda dita revolucionária, com conseqüências funestas
de que resultou o sacrifício de muitos militantes. Analisando
com um olhar retrospectivo a realização do XXX Congresso da UNE, os seus
principais responsáveis são unânimes em considerar que sua forma de organização
foi um erro, mas ninguém assume a responsabilidade de tê-lo cometido (VENTURA:
1988, p.241). Na
verdade, o buraco estava mais em baixo. A desconfiança que prevalecia entre as
tendências que se digladiavam não era
compatível com a organização exitosa de um conclave de tal envergadura, que
supõe um grau razoável de confiança entre adversários, sob pena de terceiros
arcarem com as conseqüências de eventual fracasso, que foi o que ocorreu. Uma
das provas dessa incompatibilidade foi declaração prestada à revista Veja pelo
estudante Paulo de Tarso, responsável pela segurança do congresso e seguidor de
José Dirceu, o candidato de Vladimir Palmeira à Presidência da UNE, a propósito
de uma suposta informação recebida por Travassos sobre a iminente chegada da
polícia ao sítio que sediou o congresso: “Se
ninguém fugiu a tempo, foi porque Travassos queria ver na informação recebida
uma manobra política de seus adversários” (VENTURA: 1988, p.247). ‘’ O dono do sítio Murundu, Domingos
Simões, onde se intentou realizar o XXX Congresso pagou caro o favor que fez aos seus organizadores,
cedendo-lhe sua propriedade para o
conclave estudantil. Segundo relata Ventura
“Depois de fugir e ficar escondido por dois
anos, Simões foi finalmente preso e recolhido à Operação Bandeirantes. Junto
com a mulher e duas filhas: Ana Joaquina e Maria da Glória. A sua mulher relatou que: “Fiquei numa cela e
as meninas em uma outra, de forma que a gente ouvia os gritos de Simões sendo
torturado” (1988, p.243).
Na ocasião, a mulher de Simões tinha
17 anos e nem podia ser presa, e sua filha menor, Ana Joaquina, apenas 3 anos. Os prejuízos do “vanguardismo” se estenderam às centenas de
estudantes que foram, em todo o país, privados, por um ano ou mais, de seus
direitos de estudar. Eles também
sofreram várias outras punições, derivadas da cassação de seus direitos de
estudar, extremamente prejudiciais, com destaque para o impedimento, até a
revogação do A.I nº5, de ingresso no serviço público, especialmente nas
universidades. O desprezo
histórico da esquerda pela democracia, pretensamente reduzida à condição de
“democracia burguesa”, decorreu, em grande parte, da influência de concepções
vanguardistas de revolução e de luta política, gerando um clima de desconfiança
entre tendências, que acreditavam cada uma delas, serem donas exclusivas da verdade.
Iludidas por falsas ideologias, concebiam as diferentes modalidades do
“socialismo real” como sendo efetivamente socialistas. A história, contudo,
demonstrou, com a queda do Muro de Berlim, que esse suposto socialismo era mais
nocivo ao trabalhador do que o próprio capitalismo – quando tutelado por um
regime democrático - por que não somente o explora, como também o priva de
liberdade (KAUTSKY, in LYRA, 2021, p. 147). Todavia, a débâcle dos regimes estatistas-burocráticos,
supostamente socialistas, favoreceu a inserção institucional crescente da
esquerda, desenvolvendo, a partir do
êxito de várias experiências
social-democratas, a aceitação reticente da “democracia burguesa”
e o compromisso com sua defesa. De tal forma que hoje as práticas vanguardistas
perderam, mesmo para a pequena minoria que ainda as apreciava, a sua
credibilidade e glamour.
Portanto, somente com efetiva aceitação das regras do jogo democráticas – tanto
mais consistentes quanto maior for o protagonismo das esquerdas - será possível
construir acordos, firmar alianças e elaborar programas mudancistas dotados de
credibilidade e apoio popular. Vale
refletir sobre até que ponto a atual realidade do poder no Brasil encarna essas
possibilidades, ou delas continua distanciada.
(*) Doutor em Direito (área de Política e Estado)
e Professor Emérito da UFPB.
Referências
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Claúdio José Lopes. Alienados e
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