O Congresso da UNE de 1968 em Ibiúna-SP - depoimento de Rubens Pinto Lyra

O Congresso da UNE de 1968 em Ibiúna-SP - depoimento de Rubens Pinto Lyra
06/12/2023

MEU  DEPOIMENTO  SOBRE  O   XXX  CONGRESSO  DA  UNE        

 Rubens Pinto Lyra (*)                                             

 

         NA PRAÇA VEREADOR JOSÉ MENDES, EM FRENTE AO PAÇO MUNICIPAL DE IBIÚNA, ENCONTRA-SE MONUMENTO EM HOMENAGEM AOS ESTUDANTES QUE PARTICIPARAM DO XXX CONGRESSO DA UNE NESSA CIDADE.

 Nossas trajetórias interrompidas

           não têm preço, nem retorno  

                    tudo foi consumado

           tudo foi consumido

           do nosso melhor tempo de sonhar.

 

    INTRODUÇÃO

          Afastado da universidade durante o ano de 1964, por força da cassação de meus direitos de estudar, já no primeiro ano do curso de Direito, voltei, em 1965, a curso, participando intensamente, sobretudo no ano de 1968, das manifestações contra a ditadura e, em particular, contra sua política para a universidade. O foco da mobilização dos estudantes foi, na questão educacional, a perspectiva da assinatura dos Acordos MEC-USAID.                                                                                                              No plano internacional, a guerra do Vietnã provocou forte repercussão no movimento estudantil. Fui designado pelo DCE para atuar como Promotor, tendo os Estados Unidos como réu, em 1967, em júri realizado no Clube do Estudante Universitário, sediado no Cassino da Lagoa, quartel general das batalhas campais que travamos contra a polícia.  Apesar da modéstia do evento, minha participação nesse “Júri simulado” mereceu registro do Serviço Nacional de Informações (SNI). (DIAS: 2021, p. 198).                                                                                                                      . Também distribuí, em várias ocasiões, nos cinemas de João Pessoa,  panfletos clandestinos preconizando a derrubada da ditadura. E busquei         , no âmbito da Faculdade de Direito, de perfil conservador, não só participar de atividades políticas, mas também, organizando competições, exibindo filmes de arte e integrando comissões do Diretório Acadêmico.                                                                     Marcus Paiva, à época, principal líder do movimento secundarista de 1968, afirmou, em depoimento, que “entre os universitários, eu me lembro de Rubens Pinto Lyra. Lembro da figura dele, no Ponto de Cem Réis, fazendo discurso. Ele subia num tamborete e ficava falando” ROCHA e DIAS FERNANDES (Vol. I) 2021, p.94).   Minha intensa participação no movimento estudantil secundarista, somada à atuação contra o regime militar em 1968, acima descrita, levou a Ação Popular (AP)  a convidar-me, mesmo sem integrar os seus quadros,  a ser seu candidato à Presidência do DCE da UFPB, contra o candidato  da aliança PCB-PCBR. A AP, à época, era crítica do modelo leninista e soviético de socialismo.                                         A correlação de forças, francamente favorável à candidatura adversária, determinou a vitória do candidato desses partidos.                                                                   Vale lembrar a influência, em todo o mundo, do famoso Maio de 1968 francês, movimento estudantil com desdobramentos que quase abalaram os alicerces da República Francesa, projetando-se, inclusive no movimento estudantil universitário brasileiro.                                                                                                                                             A Primavera libertária de maio destacou-se, entre outros aspectos,  por colocar em questão o modelo “socialista” hegemônico e por propor uma sociedade radicalmente democrática e libertária (LYRA, 2021, p. 299-303).

     

O CONGRESSO DA UNE

A conjuntura                                                                                                      Em outubro de 1968, fui eleito Delegado – o único-  da Faculdade de Direito DA UFPB ao XXX Congresso dessa entidade, previsto para ser realizado nesse mesmo mês em Ibiúna (SP), contra a mesma aliança que fora vitoriosa para a Presidência do DCE.   Sublinhe-se que esse  Congresso  mal foi esboçado, pois, já no início do cumprimento da sua pauta , foi dissolvido pela Polícia Militar De São Paulo,                                                                                                                                               A conjuntura estava marcada pela radicalização política, a menos de três meses de decretação do Ato Institucional nº5, suporte para  todos os atos discricionários e  violências cometidas pela Junta Militar e pelos Governos dos presidentes militares que a sucederam.                                                                          Parte da esquerda já tinha caído na clandestinidade. No plano local, ainda em agosto, em plena eleição do DCE, vários colegas haviam tido a prisão preventiva decretada entre os quais José Ferreira, Presidente do DCE e João Roberto Souza Borges dirigente da AP e Presidente eleito do Diretório de Medicina, que foi posteriormente encontrado morto, em circunstâncias até hoje não esclarecidas.             Outro militante de destaque da AP foi Socorro Fragoso, estudante de Serviço Social da UFPB e dirigente da AP. Foi obrigada, durante anos, a permanecer na clandestinidade. Com a redemocratização chegou a ser eleita Deputada Federal, com o nome de Jô Morais, pelo PC do B do Estado de Minas.                                              Também teve protagonismo na luta contra a ditadura o universitário Simão Almeida, militante do PC do B, que, como Socorro, amargou, igualmente, longos anos de clandestinidade, sendo os dois apoiadores, juntamente com João Roberto, de maior destaque da minha candidatura à Presidência do DCE, Simão, com o retorno à democracia, dedicou-se também à atividade parlamentar, sendo,  por duas vezes, eleito Deputado Estadual.

A organização do congresso

As características da organização do XXX Congresso da UNE denunciam o caráter vanguardista das concepções dos seus organizadores: foi projetado para ficar totalmente isolado das “massas”, como se dizia. Nós, os participantes, não  sabíamos como havíamos chegado lá, e de lá saímos sem saber onde estávamos.     Os congressistas foram recepcionados por participantes armados, postados na entrada do local onde se realizaria o conclave. Passaram privações, nos quatro dias em que estiveram no sitio que sediaria o congresso, no município de Ibiúna (SP), ficando consideravelmente enfraquecidos. Participaram de uma espécie de adestramento para a guerrilha, sem que jamais tivessem sido consultados sobre seu  interesse em participar dessa experiência.                                                                        Não se trata apenas de uma opinião pessoal, conforme se depreende dessa curta passagem do livro de Zuenir Ventura sobre o ano de 1968

“Ao chegar no sítio, o Presidente da União Metropolitana de Estudantes de São Paulo, Vladimir Palmeira, teve a sensação de estar desembarcando num acampamento de guerrilha (1988, p. 246)”.

 Palmeira era o principal líder do movimento estudantil universitário.        

Uma jovem participante do congresso, em reportagem da então famosa revista O Cruzeiro, revelou que

“viveu momentos de desespero: entre dormir e comer, era necessário uma escolha decisiva: os que ficavam nas longas filas de comida não conseguiam vaga para deitar. Às três da manhã quem estava dormindo, era obrigado a ceder o lugar a quem permanecia no relento, esperando a vez de descansar. A maioria não tinha condições de suportar mais um dia que fosse” (LUZ: 1968).                                                     Sou testemunha dessas condições, na realidade piores do que as descritas, pois a comida era quase inexistente, de péssima qualidade e as acomodações para a dormida mais do que precárias

“Já havia um caso de cachumba e outro de hepatite. Além disso, três pessoas haviam desmaiado de fraqueza. O serviço médico da Polícia começou a distribuir açúcar, pois constatou ser grande a carência de glicose” (O CONGRESSO:1968).                                                                                                                                               As instalações destinadas à realização do Congresso ( e que funcionaram, também, como  dormitório) , eram na verdade um buraco, cavado em um barranco, com degraus que serviam de arquibancada, tendo parte delas, inclusive, desmoronado, em função das fortes chuvas que se abateram no local. E como os setores vanguardistas do movimento universitário se consideravam iluminados, constituídos por quem, supostamente, estudou a Revolução e acreditava estar praticando-a, se julgaram no direito de impor suas concepções a todos.                                                                                                                                                                         O comportamento dos organizadores

A autoconfiança excessiva, e a incompetência dos organizadores do congresso, fez com que a Polícia paulista localizasse, com facilidade, o local onde estavam reunidos os seus participantes e os prendessem. Quem tivesse, anteriormente, querido sair, não sairia, porque a entrada do sitio permaneceu, todo, o tempo, guardada por integrantes armados da organização do Congresso.                      Impressiona, para pretensos instrutores de guerrilha, o seu despreparo. Relatam várias reportagens da época  que havia quem fosse fazer cobranças ao dono do sítio onde foi albergado o congresso da UNE. Encarregados da segurança desse conclave prenderam um dele por dois dias e terminaram por soltá-lo.                 O personagem que foi preso denunciou a prisão à polícia e só esse fato foi suficiente para comprometer o congresso. Também, a inusitada movimentação na pequena cidade de Ibiúna, que nunca recebia visitantes em quantidade, despertou igualmente as suspeitas da polícia (VENTURA:1988, p.245).

Conforme descreve Cláudio José Lopes Rodrigues

          “O XXX Congresso da clandestina UNE se constituiu um autêntico segredo de polichinelo. Foi abortado na fria e chuvosa manhã de sábado, 12 de outubro de 1968, quando 400 soldados da Força Pública de São Paulo e agentes do DOPS invadiram o sitio Murundu, sede do encontro, nos arredores do município paulista de Ibiúna, sob o comando dos delegados paulistas Orlando Rosante e Paulo Buoncristiano  e do Coronel Barsotti, Comandante do 7º Batalhão da Força Pública”. 0 “portentoso arsenal” encontrado : duas Berretas, uma Lugger e duas carabinas” (O CONGRESSO:1968).

 Prisão e libertação

Registre-se inicialmente que a detenção dos estudantes em Ibiúna  correspondeu a maior prisão coletiva até então ocorrida no Brasil. Segundo  Zuenir Ventura “o número de estudantes presos varia, segundo a fonte, entre 750 a mais de 1.500” (1988,p.239).

            Durante a “hospedagem” desses estudantes no presídio Tiradentes, não se teve conhecimento de maus tratos, nem de torturas, panorama que mudou radicalmente com a edição, em 13 de dezembro deste ano de 1968, do Ato Institucional nº 5.  Fizemos greve de fome, em protesto contra a privação de nossa liberdade e contra a comida, de péssima qualidade.  Entoávamos constantemente o hino Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós. Das lutas, nas tempestades, dá que ouçamos a sua voz.                                                                                                                      Na Paraíba, fomos libertados, ao que se dizia, por um acordo feito com o Governador João Agripino Maia, pai de um dos congressistas, Fábio Maia, que estudava Engenharia na UFPE, com o então Governador de São Paulo, Abreu Sodré. Mas os congressistas dos outros Estados, dias mais tarde, também foram liberados.                                                                                                                                         Fui o primeiro a retornar a João Pessoa. Dei entrevista a respeito do Congresso da UNE ao jornal Correio da Paraíba, desmentindo que tivéssemos sido torturados (REGRESSAM: 1968).                                                                                     Na Paraíba, assim como nos outros Estados, enquanto os delegados ao congresso estavam presos, as lideranças estudantis realizaram várias manifestações de protesto, exigindo a libertação dos seus participantes.                                    Poucos dias depois da volta de Ibiúna, tivemos o lance final: a eleição, feita clandestinamente,, do Presidente da UNE. Jean Marc Von Der Weid, candidato da AP, eleito contra Wladimir Palmeira.             

          Um depoimento sobre minha atuação

       Em artigo publicado na Revista Práxis Educacional, o prof. Rogério de Araújo Lima avaliou a minha atuação como opositor do regime militar da seguinte forma:

        “Rubens Pinto Lyra é uma das testemunhas mais notáveis do movimento estudantil de resistência ao golpe e de enfrentamento à ditadura. Isso         explica a sua participação em mais de um fórum da Comissão da Verdade da Paraíba e a dedicação de um momento (oitiva) só para seu testemunho. Nessa oitiva, que leva seu nome como título, narra sua permanente militância política, que adentrou no exercício da docência de nível superior” (2019: p. 141).

        Reflexão crítica

         Necessário, em primeiro lugar, refletir sobre as condicionantes da ação política do movimento universitário e, mais geralmente, da esquerda socialista, à época, determinada, essencialmente, pelo maniqueísmo ideológico então vigente na esquerda marxista. Avulta, nesse contexto, o papel da ideologia vanguardista, que sempre imaginou a revolução batendo à nossa porta.                                                         Esta ideologia levou o movimento estudantil universitário à falta de compreensão da correlação de forças desfavorável entre o regime militar e a esquerda dita revolucionária, com conseqüências funestas de que resultou o sacrifício de muitos militantes.                                                                                   Analisando com um olhar retrospectivo a realização do XXX Congresso da UNE, os seus principais responsáveis são unânimes em considerar que sua forma de organização foi um erro, mas ninguém assume a responsabilidade de tê-lo cometido (VENTURA: 1988, p.241).                                                                                               Na verdade, o buraco estava mais em baixo. A desconfiança que prevalecia entre as tendências que se digladiavam não era compatível com a organização exitosa de um conclave de tal envergadura, que supõe um grau razoável de confiança entre adversários, sob pena de terceiros arcarem com as conseqüências de eventual fracasso, que foi o que ocorreu.                                                                         Uma das provas dessa incompatibilidade foi declaração prestada à revista Veja pelo estudante Paulo de Tarso, responsável pela segurança do congresso e seguidor de José Dirceu, o candidato de Vladimir Palmeira à Presidência da UNE, a propósito de uma suposta informação recebida por Travassos sobre a iminente chegada da polícia ao sítio que sediou o congresso: “Se ninguém fugiu a tempo, foi porque Travassos queria ver na informação recebida uma manobra política de seus adversários” (VENTURA: 1988,     p.247).                                                          ‘’                      O dono do sítio Murundu, Domingos Simões, onde se intentou realizar o XXX Congresso pagou caro  o favor que fez aos seus organizadores, cedendo-lhe sua propriedade  para o conclave estudantil. Segundo relata Ventura

             “Depois de fugir e ficar escondido por dois anos, Simões foi finalmente preso e recolhido à Operação Bandeirantes. Junto com a mulher e duas filhas: Ana Joaquina e Maria da Glória.  A sua mulher relatou que: “Fiquei numa cela e as meninas em uma outra, de forma que a gente ouvia os gritos de Simões sendo torturado”  (1988, p.243).

           Na ocasião, a mulher de Simões tinha 17 anos e nem podia ser presa, e sua filha menor, Ana Joaquina, apenas 3 anos.                                                                        Os prejuízos  do “vanguardismo” se estenderam às centenas de estudantes que foram, em todo o país, privados, por um ano ou mais, de seus direitos de estudar.  Eles também sofreram várias outras punições, derivadas da cassação de seus direitos de estudar, extremamente prejudiciais, com destaque para o impedimento, até a revogação do A.I nº5, de ingresso no serviço público, especialmente nas universidades.                                                                                       O desprezo histórico da esquerda pela democracia, pretensamente reduzida à condição de “democracia burguesa”, decorreu, em grande parte, da influência de concepções vanguardistas de revolução e de luta política, gerando um clima de desconfiança entre tendências, que acreditavam cada uma delas, serem donas exclusivas da verdade. Iludidas por falsas ideologias, concebiam as diferentes modalidades do “socialismo real” como sendo efetivamente socialistas.                              A história, contudo, demonstrou, com a queda do Muro de Berlim, que esse suposto socialismo era mais nocivo ao trabalhador do que o próprio capitalismo – quando tutelado por um regime democrático - por que não somente o explora, como também o priva de liberdade (KAUTSKY, in LYRA, 2021, p. 147).                                               Todavia, a débâcle   dos regimes estatistas-burocráticos, supostamente socialistas, favoreceu a inserção institucional crescente da esquerda,  desenvolvendo, a partir do êxito de  várias experiências social-democratas,  a aceitação reticente da “democracia burguesa” e o compromisso com sua defesa. De tal forma que hoje as práticas vanguardistas perderam, mesmo para a pequena minoria que ainda as apreciava, a sua credibilidade e glamour.                                     Portanto, somente com efetiva aceitação das regras do jogo democráticas – tanto mais consistentes quanto maior for o protagonismo das esquerdas - será possível construir acordos, firmar alianças e elaborar programas mudancistas dotados de credibilidade e apoio popular.                                                                               Vale refletir sobre até que ponto a atual realidade do poder no Brasil encarna essas possibilidades, ou delas continua distanciada.

 

(*)  Doutor em Direito (área de Política e Estado) e Professor Emérito da UFPB.

 

Referências

DIAS, Elissandra. Vigilância e controle: a atuação do SNI sobre a comunidade acadêmica da Universidade Federal da Paraíba (1964-1985). PPGH, João Pessoa-PB, 2021.Fonte: Fundo SNI. Agência Recife ARE ACE 2075 81

LIMA, Rogério Araújo. A educação superior na Paraíba à luz da Comissão Estadual da Verdade. Revista Práxis Educacional. Vol. 15, sn.34, Edição Especial, 2019.

LUX, Luiz Antonio e PETROLLI, Claudine. Quatro noites no purgatório. O Cruzeiro, 2.11.1968.

LYRA, Rubens Pinto. A primavera libertária de Maio. In: Lyra, Rubens Pinto. Bolsonarismo: ideologia, psicologia, política e temas afins. João Pessoa: Ed. do CCTA/UFPB, 2021.

KAUTSKY, Karl.  A ditadura do proletariado. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas

O C0NGRESSO INTERROMPIDO. Veja, nº 6, 16.10.1988.

REGRESSAM totalmente livres os estudantes presos em São Paulo. João Pessoa: Correio da Paraíba, 20.10.1968.

ROCHA, Washington e DIAS FERNANDES, Telma. 1968: o ano que ficou. Vol. I João Pessoa: Ed. do CCTA, 2017.

ROCHA, Washington e DIAS FERNANDES, Telma.           1968: o ano que ficou. Vol. II. João Pessoa: Ed. do CCTA, 2018.

RODRIGUES, Claúdio José Lopes. Alienados e subversivos – a aventura estudantil.

João Pessoa: Editora Ideia, 1999.

VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. São Paulo: Nova Fronteira, 1988.

 

 

 

 


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