Aborto na Constituição: arrogância socialista e lei
pervertida
No célebre opúsculo La loi (A lei), publicado em 1850, Frédéric Bastiat estabelece os fundamentos antropológicos naturais da lei: vida, liberdade e propriedade. A lei é justiça. Não uma justiça positiva, que se arroga poder organizar a fraternidade e a solidariedade, mas uma justiça negativa que se limita a evitar que os direitos de um usurpem os direitos do outro. A lei é, portanto, apenas “a organização do direito individual preexistente de legítima defesa.”
A expansão indefinida dos direitos faz com que a lei deixe de representar a justiça e passe a ser instrumentalizada para a proteção dos interesses corporativos e das categorias. Quando a lei não se limita ao seu próprio papel, ela age contrariamente ao seu próprio fim e destrói o seu propósito, destrói a justiça que deveria fazer reinar e coloca a força coletiva, representada pelo Estado, contra a vida deveria proteger.
A atualidade desse texto de Bastiat é considerável e pode ser aplicada para interpretar as mazelas sócio-econômicas do Brasil, onde o socialismo avança sob o subterfúgio da concessão de direitos e aplicação de uma lei iníqua já instrumentalizada pela casta dos poderosos que usam suas prerrogativas políticas e jurídicas para favorecer seu agrupamento político-ideológico em um cicloperpétuo de corrupção e impunidade.
Nosso interesse nesse artigo, porém, é usar esse preâmbulo para abordar a questão do aborto, tido como um direito por alguns, rejeitado como um crime por outros e prestes a ser institucionalizado na França.
A prática do aborto já foi descriminalizada na França desde 1975, com a promulgação da Lei Veil. O nome da lei faz referência a Simone Veil, então ministra da Saúde da França, que pronunciou um discurso em 1974 defendendo o novo projeto de lei.
No discurso que deu nome à lei, vê-se claramente que o aborto é considerado um mal, tolerado em determinadas circunstâncias e que o foco da lei era evitar uma aplicação penal contra as mulheres que o praticavam. Nas palavras da própria ministra, que foi também a primeira mulher a presidir o Parlamento Europeu, “o aborto deve continuar a ser a excepção, o último recurso para situações desesperadoras”. Ela acrescenta: “nenhuma mulher recorre ao aborto voluntariamente”, “ainda é um drama e sempre será um drama”.
Ora, se o aborto é um mal menor, expresso na referida lei como uma exceção, ele só poderia ser permitido no caso de preservar um bem maior, a saber, a vida da mãe. Ele não poderia nunca ser entendido como um direito ou como uma liberdade em si. É isso que explica Grégor Puppinck, diretor do Centro Europeu de Lei e Justiça, em artigo pulicado na revista francesa Valeurs actuelles, no qual critica o projeto de lei constitucional do governo de Emannuel Macron, relativo à liberdade de recursos para o aborto, recentemente aprovado na Assembleia Nacional Francesa.
A proposta com o objetivo de consagrar o “direito” ao aborto na Constituição foi apresentada pela primeira vez em 2018, pelo partido de extrema esquerda La France Insoumise (FI). Na ocasião, os partidários do presidente Macron votaram contra o projeto. Agora, sob o pretexto de que, em várias partes do mundo, e particularmente nos Estados Unidos, esse suposto “direito” ao aborto está ameaçado, os próprios macronistas propuseram acrescentar na Constituição uma frase que, apesar da complicação, prevê essencialmente a mesma coisa que o projeto de lei da extrema esquerda previa.
Apesar da sensata declaração contrária do presidente do Senado, Gérard Larcher, que tentou retomar o bom senso alertando que “constituição não é um catálogo de direitos sociais”, foi aprovado por 99 votos a favor e 13 contra o estranho texto constitucional segundo o qual “a lei determina as condições em que se exerce a liberdade da mulher, que lhe é garantida, de recorrer à interrupção voluntária da gravidez”.
Para Grégor Puppinck, autor do referido artigo da Valeurs
actuelles, essa formulação mostra que “obviamente, o governo não sabe o
que é uma liberdade e o que a distingue de um direito”.
Vimos que o aborto, mesmo sob a óptica de quem militou para
descriminalizá-lo, é um mal. Ora, “um mal, mesmo que considerado necessário,
não pode ser um direito ou uma liberdade, mas apenas uma exceção. […] A
lei obedece à sua própria racionalidade que é a da justiça. Cabe ao legislador
servi-lo e não utilizá-lo para fins políticos”, afirma o jurista.
A sentença proposta e aprovada na Assembleia é, portanto,
uma excrescência: “primeiro quanto ao seu objeto, porque o aborto não tem lugar
numa Constituição. Depois, quanto à sua expressão, porque falar em ´liberdade
garantida´ é redundante.” Para Puppinck, a frase aprovada não acrescenta nada à lei já existente que
organiza o acesso ao aborto e sua única novidade seria incluir na Constituição
que o aborto é uma “liberdade”, o que seria malbaratar a lei.
As noções de “liberdade” e “direito”, afirma o jurista, não
podem ser aplicadas ao aborto: “a´liberdade´ é uma faculdade natural da
pessoa que o Estado se compromete a respeitar porque considera que esta
faculdade é boa. Estas incluem, por exemplo, liberdades de expressão,
pensamento, movimento ou negócios. Todos possuem naturalmente estas faculdades,
e tudo o que se pede ao Estado é que não dificulte o seu exercício, que garanta
o seu livre exercício, sem prejudicar os outros”.
Um direito, por sua vez,é, ou um bem natural que deve ser
protegido, ou um bem não natural que pode ser reivindicado ao Estado em nome da
justiça. Embora uma perspectiva política radicalmente libertária queira
delimitar o Estado apenas ao uso legítimo da força para garantia dos direitos
naturais e do cumprimento dos contratos, é amplamente aceito, inclusive entre
liberais moderados, que alguns direitos sociais como educação e saúde decorrem
da própria finalidade do Estado, cuja existência se justifica e fundamenta na
busca pelo bem comum.
Isso posto, concordamos com o autor do artigo que “dizer
que o aborto é uma liberdade, como propõe o governo, é um absurdo, porque o
aborto não é uma faculdade natural da pessoa.” O aborto, ou IVG, como os
franceses costumam chamar, tampouco se encaixa na categoria de direito: “Isto
suporia ou que o aborto corrige uma injustiça entre duas pessoas - o que
obviamente não é o caso - ou que a sociedade considera que o aborto é uma
necessidade humana fundamental, da mesma forma que a educação ou a saúde. É
aqui que está a esquerda. Mas isto pressupõe que o aborto é um bem em si, da
mesma forma que a saúde ou a segurança. Mas obviamente não é esse o caso.”
Na gênese dessa confusão entre liberdade e direito
produzida pela esquerda está a perda do sentido clássico de liberdade. Da noção
de defesa da vida, liberdade e propriedade e limitação do poder coercitivo do
Estado passou-se para a noção de libertação, tanto no sentido de obtenção de
determinadas condições e exigência de direitos sociais quanto no sentido de
libertação do que consideram amarras de uma moral tradicional e “burguesa”.
É assim que, paulatinamente, com intervenções como essa que está acontecendo agora na França e como tantas outras que acontecem aqui no Brasil, a “arrogância socialista” à qual Friedrich Hayek se referia vem substituindo “um sistema moral altamente evoluído, bastante sofisticado em nossa ordem espontânea” por um “projeto novo e abrangente de nossa moral, da lei, da linguagem tradicional.”
Nesse novo mundo, criado pelos engenheiros sociais progressistas, mulheres podem ser homens, homens podem ser mulheres, e uma vida indefesa pode ser aniquilada com as bençãos da Constituição. É a perversão final prevista por Bastiat: “A lei pervertida! A lei não apenas desviada de seu objetivo, mas aplicada para perseguir um objetivo diretamente oposto! A própria lei cumprindo a iniqüidade a quem sua missão era punir!”
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