SÉRGIO DE CASTRO PINTO SEMPRE
por João Batista de Brito
O poeta Sérgio de Castro Pinto lança o seu novo livro de poemas “Brando fogo das palavras” (São Paulo: Patuá, 2024).
Alguma novidade? Não, e ainda bem que não. A mesma economia de meios, a mesma preciosa maneira de trabalhar as palavras, o mesmo gênio criativo, o mesmo estilo inconfundível, um estilo que não pode ser chamado de outra coisa, senão de ´estilo Sérgio de Castro Pinto`.
E se esse estilo é o mesmo, o impressionante é como cada poema, em si mesmo, é uma novidade. Tudo isso é tão bom e belo e único, que ninguém quer mudanças.
Aqui convido o leitor a ler comigo pelo menos dois dos poemas do livro. Dois poemas que, cada um a seu modo, ilustram a dualidade tímica nessa poesia.
Comecemos com esse curto e precioso “meu rio”, que, de alguma forma, resume a dimensão disfórica, “dolorosa” do livro.
meu rio
as águas desse rio
não sabem nadar
escorrem fio a fio
e se afogam no mar
Já no título, o poema propõe uma metáfora. Decididamente o rio mencionado não é um rio verídico, geográfico, literal. Se houvesse dúvida, bastaria passar a vista nos dois primeiros versos do poema. Com efeito, não se trata – como o leitor apressado poderia supor - do Rio de Janeiro, nem do rio Tejo, citado noutro poema do livro. Como sugere o pronome pessoal do título, é um rio só do poeta e que com ele se confunde.
Suas águas têm uma característica estranha: não sabem nadar. E aí tem força uma metonímia singular, implicando uma troca de papéis: pela experiência do leitor /não saber nadar/ é uma expressão que se diz de pessoas. Aqui, a deficiência não é dos nadadores, mas da própria água.
Ao invés de nadar, essas águas “escorrem fio a fio” – outro contrassenso que o leitor precisa resolver. Tudo bem, /escorrer/, sim, é próprio das águas, porém, a expressão seguinte introduz um contexto todo diverso do campo semântico desenvolvido até aqui, aquele do bordado, da renda: “fio a fio”. E a essas águas deficientes (por não saber nadar) é dado mais um atributo humano: o de tecer. Disse acima que o leitor precisa resolver os contrassensos. Corrigindo: precisa apenas sentir a sua força.
O poema se conclui com um corolário que é ao mesmo tempo lógico e absurdo. Lógico porque quem não sabe nadar se afoga; absurdo porque aqui quem se afoga são as águas. E mais um contrassenso: “e se afogam no mar”, ou seja, águas se afogando em águas.
Evidentemente, falar em lógica aqui é só uma estratégia de leitura. O rio é a própria persona poética, com todo o seu espanto, diante de si mesmo, e diante da vida.
Disse acima que “meu rio” resumiria a inclinação tímica do livro, a da disforia. Mas, ao lado dessa veia disfórica, dolorosa, há também, neste livro - e, a propósito, na obra completa do poeta - uma digamos, inclinação “para cima”, nada descartável. Exemplo dessa inclinação, que se não chega a ser eufórica, é ao menos, “gozosa”, vamos ter no poema “o meu primeiro automóvel”, onde, em estilo ricordanza della mia giuventú, o poeta relembra uma agradável ocorrência do passado. Leiamos:
o volkswagen
abastece-me
de oásis
ágil e sem sede,
debulha a v(i)agem
de um mundo verde.
o volkswagen
é um pequeno
dromedário
e a vida 20 km rodados.
Obviamente, o poema não pode ser lido sem um pano de fundo histórico: o fato de que o volkswagen, com seu mínimo consumo de água, teria sido inventado para atravessar o deserto. Água no deserto só se for em oásis, daí a primeira estrofe: o volkswagen / abastece-me / de oásis. Ou seja, inútil a tão proclamada vantagem técnica desse automóvel, porque, em si mesmo, com ou sem água, ele me conduz ao maravilhoso. E claro o vocábulo “oásis” ganha sentido mais amplo do que o de mero locus amoenus: a felicidade de ser jovem, já que, mesmo narrado em tempo presente, o tempo do poema é a juventude do poeta, esta também dada pela chegada desta marca de automóvel no Brasil – começo dos anos sessenta.
O contraste entre a /aridez/ do motivo implícito /deserto/ e a implícita /uberdade/ ou, se se puder dizer /frutuosidade/, do termo explícito “oásis” persiste na estrofe seguinte: ágil e sem sede (o volkswagen) debulha a v(i)agem de um mundo verde. Notar que, cada vez mais, os elementos do motivo /oásis/ se fazem presentes, e se sobrepõem ao deserto: no caso, no verbo debulhar, na palavra sugerida pelos parênteses “vagem”, e de modo direto no adjetivo “verde”, sem falar que antes disso já se dissera, também diretamente, “sem sede”. Além dessa uberdade geral, o termo “viagem” (sentidos: literal e figurado), reforça o lado favorável do estado de espírito descrito.
Seguindo a lógica da propaganda do volkswagen como um carro para o deserto, aceitando-a e ao mesmo tempo criticando-a de modo cômico (e o humor é um elemento importante na poética de Sérgio de Castro Pinto) o automóvel é dado como “um pequeno dromedário”, verdade absurda que conduz a um outro belo corolário: o de que a vida se resume a 20 quilômetros rodados – idade do poeta (vinte anos) na ocasião da aventura rememorada.
Como já afirmado, numa poética tão igual a si mesma, cada poema é, incrivelmente, uma novidade.
(Em tempo: o texto reproduz parte da minha apresentação do livro, na ocasião do lançamento).
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