VOCÊ GOSTA DE RACHMANINOFF?
por João Batista de Brito
Noite de sexta-feira. Teatro lotado. No programa, a obra de alguns compositores de música clássica internacional.
Evento raro assim na província, Laura não podia perder. Deu trabalho convencer o marido, Fred, mas conseguiu. Durante o concerto, Fred cochilou, mas tudo bem, empolgada com a música, ela mal notou. De qualquer forma, quando a orquestra executou o “Segundo concerto para piano” de Rachmaninoff, ela, o espírito elevado, o coração na boca, não notaria se caísse uma bomba ao seu redor.
Na saída do teatro, Laura ainda levitando, Fred pesado e sonolento, encontraram esse casal, Alex e Madalena, de quem tinham sido vizinhos tempos atrás e que não viam desde então.
Cumprimentos de praxe feitos, Laura se apressou em perguntar a Madalena se ela gostara do concerto. A resposta foi decepcionante. Não, não gostara. Na verdade, tinha vindo só por causa do marido, que era louco por música clássica e possuía coleções intermináveis de discos. Desconcertada e meio confusa, sem saber o que dizer, Laura apressou a despedida.
Quis o destino que, não muito tempo depois, Laura e o casal se reencontrassem. Laura tinha ido a um dos cinemas do centro com uma amiga, e na saída, lá estavam Alex e Madalena, sorridentes e simpáticos. Os quatro decidiram por um sorvete ali perto, que a noite estava quente.
A conversa trivial entre pessoas que mal se conhecem não impediu que Laura se dirigisse, não mais a Madalena, mas a Alex, e fizesse a pergunta de antes, agora mais específica:
“Você gosta de Rachmaninoff?”
Sim, ele era simplesmente apaixonado por Rachmaninoff, especialmente pelo seu “Concerto número dois para piano”, justamente o que fora executado no teatro. Encantada com a coincidência de gostos, pois aquela também era, de longe, a sua peça preferida na obra do compositor russo, não pôde esconder a alegria que sentiu em conversar com alguém com suas afinidades.
E veio o convite, sugestão de Alex: Laura e Fred deviam aparecer na casa deles, se fosse o caso, para passar uma tarde ou pedaço de noite, tomar uns vinhos, e checar a coleção de clássicos dele. Ao que Laura deu uma entusiasmada resposta afirmativa, em seguida se envergonhando do entusiasmo.
Tudo confirmado e marcado, no dia da visita, Fred, ocupado com um trabalho extra, não pôde ir. Por sua vez, Madalena foi, no meio da tarde, chamada para dar um pulo na casa da mãe, que - dissera a empregada ao telefone - fora acometida de algum mal estar súbito.
A sós, Alex e Laura, acomodados no sofá da sala, ouviram o “Segundo concerto para piano” de Rachmaninoff até a exaustão. Ele visivelmente engasgado de emoção, ela escondendo uma lágrima teimosa que sempre lhe escorria quando ouvia aquela composição avassaladora.
Foi naquela tarde que os dois compreenderam que precisavam se ver mais; que pertenciam, os dois, àquela raça fraca de criaturas que são abduzidas pela música para universos misteriosos e sem limites; sonhadores incorrigíveis que não resistem, inteiros, ante a explosão da beleza, e, despedaçados, têm dificuldade de encontrar o caminho de volta para o mundo concreto do dia a dia... Sim, precisavam se ver mais.
E não se fizeram de rogados: marcaram um próximo encontro, e nem se incomodaram de avisar aos respectivos cônjuges. Iriam falar de música, e não podia haver nada mais inocente que isso.
E o encontro aconteceu. O problema é que, falando de música, falavam de si mesmos: de suas insatisfações no casamento, das limitações e incompreensões do cônjuge, de como às vezes se sentiam sós, de como sentiam falta de uma alma gêmea, coisas assim...
Inevitavelmente, os encontros foram se repetindo; encontros estes que passaram a ser um pouco mais furtivos. Nem sequer se tocavam, mal apertavam as mãos, porém, cada um sabia do esforço que fazia para conter o desejo de proximidade. As almas estavam abraçadas e os corpos cobravam outro tanto.
Com o passar das vezes, infelizmente, fatores colaterais com que não haviam contado, começaram a se intrometer: medo e culpa.
Num desses encontros furtivos e culpados, foram, debaixo de chuva, a uma matinée num cinema de bairro, afastado e de plateia reduzida, onde estava em exibição um Festival de cinema clássico inglês.
Pois o filme visto naquela tarde chuvosa – como era possível uma coisa daquela? – simplesmente lhes contou a história deles mesmos, quase tim-tim por tim-tim, e, mais que isso, a essa história deu o ponto final, o que, aliás, já estava previsto no título do filme: “Desencanto”.
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