Olvidarmos a nossa própria tradição para dar ouvidos à gritaria do mundo pós-moderno é abrir flanco para aqueles mesmos que querem destruir não apenas o espiritismo, mas toda e qualquer religião
10 minutos de leitura14.06.2025 18:29A transformação do discurso religioso em plataforma política sempre foi algo contra o qual me contrapus firmemente. Não obstante, nota-se, muitas vezes, que o próprio discurso político penetra as instituições religiosas, pervertendo-as, ou seja, afastando-as do seu real propósito de edificação moral, de um caminho santificado em suas intenções, embora imperfeito na forma como é trilhado por homens, todos eles falíveis.
Trago o assunto à tona nesse artigo devido a um fato ocorrido comigo, no centro espírita que frequento e no qual desenvolvo alguns trabalhos voluntários. Passo a narrar sucintamente o episódio e, em seguida, retomo minhas considerações.
Para quem não conhece, um centro espírita costuma ter vários tipos de atividades, dentre as quais o estudo doutrinário.
Não há, no espiritismo, sacerdotes, padres ou coisas do tipo, mas há pessoas comuns que, após anos de estudos, começam a expor seu entendimento sobre o espiritismo, tanto em cursos oferecidos pela casa espírita quanto em palestras por aí afora, em congressos espíritas diversos.
Eu atuo, dentre outras funções, como palestrante e como professora do curso de formação doutrinária chamado Estudo Sistemático da Doutrina Espírita.
Estava eu ministrando a vigésima aula anual do referido curso quando, em meio a uma exposição sobre reencarnação e sobre o retorno do espírito ao corpo, uma pessoa levanta a mão e me interpela sobre o que o espiritismo diz acerca de pessoas trans.
Ciente do terreno movediço no qual estava prestes a pisar, ponderei alguns segundos se deveria ou não responder à interpelação, mas conclui, com total consciência do que estava fazendo, que sim, deveria responder.
Expliquei calmamente que, em sentido estrito, literal, a codificação doutrinária exposta na obra de Allan Kardec nada dizia sobre pessoas trans, tendo em vista que foi levada a cabo no século XIX, quando tais questões não se apresentavam da forma como hoje se vê.
Acrescentei, no entanto, que, tomando por base os fundamentos da doutrina espírita, a cirurgia de redesignação sexual como solução para as situações em que um indivíduo se sente desconfortável em relação ao seu sexo biológico não me parecia a solução mais correta.
Isso porque, embora o Espírito seja neutro enquanto tal, possuindo ambas as polaridades em que o sexo se expressa, se a alma reencarna como mulher é porque precisa passar pela experiência do feminino e se reencarna como homem é porque precisa vivenciar a experiência do masculino.
Disse ainda que mutilar o próprio corpo para não vivenciar a experiência à qual a divina providência nos havia destinado era um ato de rebeldia contra a criação, que estimular crianças a fazê-lo era um ato equivocado e que banalizar e tentar naturalizar tudo isso era um desvio de rota só possível em uma sociedade profundamente perturbada.
O leitor tem todo o direito de considerar meu discurso conservador, arcaico, preconceituoso ou seja lá o que for. O que está em questão aqui é o meu direito de afirmar tais coisas dentro da instituição religiosa à qual me vinculo.
A questão se impôs porque, sentindo-se ofendida pela minha fala, a companheira da pessoa que me interpelou veio ter comigo ao fim da aula exigindo de mim uma profunda reflexão, uma retração, uma admissão de que eu não tinha o direito de dizer o que disse, uma vez que a minha fala “feria a existência” do seu companheiro, que era um homem trans.
O casal estava ali na minha frente: uma mulher e um homem trans. Duas pessoas discretas, aparentemente tranquilas, educadas, mas cuja fala ia se tornando gradualmente mais autoritária e hostil à medida em que eu lhes explicava serenamente que não iria me retratar e que tinha sim o direito de dizer o que eu disse, independente da mágoa que a minha fala lhes pudesse causar.
Diante da minha intransigência em aquiescer que eu não teria o direito de dizer o que disse, veio a ameaça sutil: “não pode dizer, porque essa sua fala estimula a transfobia”.
Trata-se de uma ameaça, afinal, em 2019, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4733 (impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros – ABGLT), o STF aprovou a criminalização da homofobia e da transfobia com base na aplicação da Lei do Racismo (Lei nº 7.716/1989), ou seja, a Lei do Racismo passou a ser aplicada aos casos de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.
O casal estava então me imputando um crime muito grave. Encerrei o assunto com a delicadeza possível em um contexto tenso e, chegando em casa, gravei um vídeo expondo e esclarecendo o ocorrido e postei no meu perfil do Instagram, afinal, queria me defender antecipadamente de uma falsa acusação. Publicamente, dei minha versão dos fatos.
No outro dia, soube pela coordenação do centro espírita que o casal tinha se queixado da minha suposta discriminação e que havia feito um boletim de ocorrência em meu desfavor. Felizmente a direção do centro entendeu meu ponto e me deu apoio.
Houve outros desdobramentos do caso, como tentativas de cancelamento, mas não convém aborrecer o leitor com excesso de narrativas.
Até para que as vítimas, como eu, de denunciação caluniosa, não se intimidem, convém ressaltar que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao criminalizar a homofobia e a transfobia por analogia à Lei do Racismo, ressalvou explicitamente a liberdade de expressão religiosa, científica e filosófica.
Ao casal que me denunciou, aos que clamaram nas redes sociais para que me processassem e aos que pediram à Federação Espírita do meu estado que se pronunciasse contra mim lembro que, durante o julgamento da ADO 26 e do MI 4733, o STF estabeleceu que:
“Não se criminaliza a manifestação pacífica e fundamentada de convicções religiosas, filosóficas ou científicas, mesmo que contrárias à homossexualidade ou identidade de gênero, desde que não incitem o ódio, a violência ou a discriminação”.
Como se pode constatar, estou totalmente respaldada e protegida da denunciação caluniosa de que fui vítima. Preocupa-me menos a minha situação particular que os rumos da religião que professo diante da inegável pressão daqueles que militam em outras searas e levam a militância para dentro da seara espírita, misturando indiscriminadamente o joio e o trigo.
Já se infiltrou dentro do espiritismo um movimento chamado “espiritismo progressista”, que defende uma abordagem crítica, laica e engajada da doutrina espírita, buscando “atualizar os ensinamentos de Allan Kardec à luz dos valores e desafios do século XXI”.
Esse movimento nasceu no final dos anos 1970, ganhando força a partir dos anos 1980, com influência de centros espíritas laicos ligados à CEPA (Confederação Espírita Pan-Americana).
Ele é composto por autointitulados espíritas que rejeitam o modelo tradicional da FEB (Federação Espírita Brasileira), que consideram excessivamente conservador e religioso e que pretendem levar a doutrina espírita para um patamar mais universal e socialmente ativo. Seu foco principal é a “atualização crítica” da doutrina.
Em 2018, espíritas progressistas reagiram a declarações anti–ideologia de gênero e anti-marxismo do médium e orador Divaldo Pereira Franco, com um abaixo-assinado e notas públicas.
Esse grupo já está bastante organizado em discussões acadêmicas sobre a moralidade sexual, reprodução e outros temas, analisando-os sempre sob a ótica esquerdista progressista mais radical.
Em 2022, esse grupo lançou uma versão de O Evangelho Segundo o Espiritismo – Edição Antirracista; em abril de 2023, fez uma versão do Livro dos Espíritos também com notas antirracistas, revisando trechos que supostamente carregam preconceitos do século XIX.
Todo esse material (no meu entendimento altamente desnecessário, para não dizer imprestável) encontra-se disponível para consulta no portal Espíritas à Esquerda, em domínio público. Deem uma olhada também no perfil do Instagram “espiritasaesquerda” e constatem com os seus próprios olhos no que estão tentando transformar o espiritismo.
O espiritismo, por mais próximo que esteja temporalmente da modernidade, finca suas raízes na própria tradição judaico-cristã. É a ela que nós, espíritas, estamos vinculados e é com base também nessa mesma tradição que dizemos o que dizemos e sustentamos o que sustentamos.
Não há porque transformar o espiritismo em uma “religião” da moda, maleável ao bel prazer das contingências mundanas, doutrina frouxa, flexível, reescrita e reinterpretada sob a pressão dos interesses políticos do momento.
Somos obviamente tolerantes e amantes da diversidade, somos naturalmente afeitos ao pluralismo e respeitamos a visão de mundo das coletividades e as decisões individuais que dizem respeito apenas à existência de cada um; não somos, porém, obrigados a nos curvar e a corroborar com uma visão de mundo que não nos diz respeito, que não encontra compatibilidade com nossos fundamentos doutrinários.
Olvidarmos a nossa própria tradição para dar ouvidos à gritaria do mundo pós-moderno (mundo que, para usar o linguajar espírita, sabemos estar em plena transição) é abrir flanco para aqueles mesmos que querem destruir não apenas o espiritismo, mas toda e qualquer religião.
Não é nos calando e nos acomodando a esse estado de coisas que vamos encontrar a pacificação necessária para as nossas consciências.
Há aqueles cujo trabalho é o acolhimento fraterno e amoroso para com os que se enroscam nas confusas teias ideológicas que causam a perturbação mental em voga, que se pretende banalizar e massificar como se se tratasse de algo normal e imune a questionamentos.
Há, porém, aqueles que, sem fugirem ao dever cristão do acolhimento, precisam esclarecer e prestar culto à verdade.
A natureza reflete, a seu modo, a verdade. Negar a realidade patenteada pela própria natureza é abrir ainda mais espaço para o questionamento da própria existência da verdade.
O materialismo tem se arvorado o único detentor de uma verdade científica, o que está muito longe de ser algo legítimo. No entanto, o próprio materialismo e a própria ciência vê-se hoje confrontados pelas novas ideologias.
Quando o mais básico processo natural, qual seja, a distinção entre um homem e uma mulher é passível de negação no interior de uma sociedade, negar toda e qualquer realidade se torna um caminho natural.
E quando já não for possível declarar a verdade da fé ou da razão, só será possível declarar uma única verdade: a verdade imposta pela força e pela vontade de poder.
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