Minha matéria no Correio das Artes deste mês de agosto:
João Batista de Brito
A N J O S
Se não antes, desde os tempos de Santo Augustinho a angelologia – estudo dos anjos - tem despertado interesse entre os pensadores das ciências da religião.
Aqui pretendo chamar a atenção para a presença desses seres celestiais no cinema, com concentração em três filmes do século XX, emblemáticos de suas respectivas décadas: quarenta, sessenta e oitenta. Por que estas escolhas? Porque são filmes destacados pela originalidade, qualidade e repercussão.
Da década de quarenta penso em “A felicidade não se compra” (“It´s a wonderful life”, 1946) do cineasta americano Frank Capra. Dos anos sessenta escolho “Teorema” (1968) do cineasta italiano Pier Paulo Pasolini. E finalmente, da década de oitenta destaco “Asas do desejo” (“Der Himmel uber Berlin”) do diretor Wim Wenders.
Para refrescar a memória do leitor, faço um breve resumo dos respectivos enredos.
Em “A felicidade” um anjo desce do céu com um propósito bem explícito: salvar do suicídio um cidadão financeiramente falido. George Bailey é um ser humano do bem, um pai de família trabalhador e honesto, mas as circunstâncias estão levando-o ao gesto drástico. Na figura de um velhinho engraçado, o anjo Clarence lhe aparece na hora H e o salva, mas não com facilidade. Para tanto, Clarence precisa operar a mágica de engendrar um mundo paralelo em que George Bailey não teria existido, e portanto, não teria ajudado as muitas pessoas que ajudou. Depois de sofrer nesse “pesadelo” de um mundo sem ele, George volta ao real, e dá-se conta da beleza que é a vida do homem comum, e de como vale a pena viver, com ou sem dívidas.
Se o anjo de Capra é um anjo do bem, talvez o mesmo não possa ser dito do anjo de Pasolini. Este veio não se sabe de onde para pôr em crise os membros de uma família abastada. A relação com cada um dos membros dessa família – pai, mãe, filho, filha e empregada – é carnal, ou seja, ele faz sexo com cada um e, nesse contato, radicalmente os transforma. Depois desse contato, e do desaparecimento do “anjo”, a família se esfacela e ninguém será mais o mesmo. Qual o destino de cada um ninguém sabe, muito menos o motivo da transformação. A emprega levita, e o patrão capitalista se perde num deserto sem fim, e ao espectador não se concede a chave do mistério, levando-o a interpretações as mais diversas, quem sabe, de ordem ideológico, política ou existencial.
Ao contrário dos dois filmes anteriores, o cenário em “Asas do desejo” não é terráqueo: estamos literalmente no mundo imaterial dos anjos. Como anuncia o título original do filme, estamos, não em Berlim, mas no “céu sobre Berlim”. Outra coisa, agora não se trata mais de um anjo, mas de vários anjos que, de lá de cima, nos espiam, e conjeturam sobre a materialidade da vida dos humanos e o nosso destino de sofredores mortais. Amor, medo, ódio, desejo, são fenômenos observados lá de cima, sem muita compreensão dos que seriam esses sentimentos, ou outros quaisquer. De tanto observá-la, um dos anjos se apaixona por uma moça e alimenta o sonho de humanizar-se e vir viver na terra a vida dos humanos. Seria isso possível? A rigor, o filme constitui uma longa e profunda reflexão sobre a precária condição humana, ilustrada pelo seu avesso: a ideal dimensão metafísica dos anjos.
São três filmes com anjos, mas, como se vê, bem diferentes entre si, cada um refletindo o espírito de suas respectivas décadas, cada uma separada da outra, simetricamente, por vinte anos.
Falando de modo simples, poderia se dizer que esses três filmes têm, respectivamente: o otimismo dos anos quarenta, a inquietação dos sessenta, e a pós-moderna busca de conciliação dos oitenta. Cada um com seu lugar próprio: os Estados Unidos do pós-guerra, a Europa do 68 e dos hippies, e por fim, a Europa pós-tudo. São propostas particulares e originais, mas as três concebidas, curiosamente, a partir de um ponto diegético comum: o da possibilidade de comunicação/relação efetiva entre anjos e humanos.
Revê-los nesse confronto, seria talvez uma boa estratégica para entender o turbilhão que foi o Século Vinte. E, de sobra, constatar o tanto que o cinema reflete a condição humana e suas circunstâncias. As sociais, as políticas, as existenciais...
Enfim, fica feita a anotação.
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